LUIS PISCO < clique >
Já Bocage não sou!... À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.
Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa!... Tivera algum merecimento,
Se um raio da razão seguisse, pura!
Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:
Outro Aretino fui... A santidade
Manchei!... Oh! Se me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!
Bocage
DOMINGO, OUTUBRO 19
Austeridade mata
«Mesmo em tempo de crise investir em Saúde Pública é rentável»
Os efeitos as políticas de austeridade do sector da saúde foram «desastrosos» sobretudo porque ocorrerem numa altura em que os cidadãos mais precisam de cuidados. A ideia é defendida pelo investigador inglês,David Stuckler, que considera «vantajoso» o investimento em Saúde Pública, mesmo durante as crises económicas
«Mesmo em tempo de crise investir em Saúde Pública é rentável», afirmou, no Porto, David Stuckler, sociólogo e investigador da Universidade de Oxford (Inglaterra), defendendo que, muito embora a recessão seja prejudicial, no caso da saúde «as medidas de austeridade podem matar».
Convidado a falar sobre The Body Economic: Why Austerity Kills (exactamente o título da publicação de que é co-autor e que é muito crítica em relação às políticas de austeridade no sector da Saúde), no âmbito do 6º Encontro Nacional da Clínica de Ambulatório VIH, Hospitais e Dia link o também professor de Política Económica e Saúde Pública da Universidade de Oxford advertiu: «Os políticos falam incessantemente acerca do sísmico impacto económico e social da recessão, mas muitos continuaram a ignorar os seus efeitos desastrosos na saúde das pessoas». Aliás, para David Stuckler, nos últimos três anos, as políticas adoptadas neste sector «exacerbaram esses efeitos em muitos países, sobretudo nos que adoptaram severas medidas de austeridade», permitindo «cortes em programas sociais na altura em que os cidadãos mais precisavam deles».
Segundo Stuckler, que acompanhou particularmente a situação da Grécia, desses cortes resultou, em muitos países - como de resto o investigador denuncia no The Body Econoimic, edição que mereceu já destaque na revista The Lancet –- «na transformação da sua recessão em verdadeiras epidemias», «arruinando ou extinguindo milhares de vidas num disparatado esforço para equilibrar o orçamento e os mercados financeiros».
«Um problema de vida ou de morte»
Na sua intervenção, que teve como moderador António Sarmento, presidente do encontro e director do Serviço de Doenças Infecciosas do Centro Hospitalar de São João, no Porto, Stuckler mostra como a política dos governos se tornou «um problema de vida e de morte» durante a crise financeira. Com base numa série de estudos de caso «históricos», que se estendeu desde a América dos anos 30, passando pela Rússia e Indonésia dos anos 90, até à Grécia, Espanha, Inglaterra e Estados Unidos dos nossos dias, o sociólogo demonstra que «a má orientação das políticas [de saúde] relativas à crise financeira resultou num aparatoso desfile de tragédias humanas», que vão desde suicídios e infecções por HIV até epidemias, como foi o caso da tuberculose. No entanto, durante a depressão, países como a Islândia, Noruega e Japão «estão mais felizes e saudáveis do que nunca, provando que os choques financeiros não destroem inevitavelmente a Saúde Pública», acrescentou o investigador.
«Isto não está na mesma, está pior, como é evidente»
As consequências da crise económica e os cortes no orçamento do sector foram também comentadas por António Sarmento que, em declarações ao «TM», esclareceu: «A saúde custa dinheiro e exige recursos humanos, portanto, quando há menos dinheiro e menos recursos a saúde piora claramente. Qualquer pessoa sabe que mesmo que os médicos sejam muito bons, um doente é melhor tratado na Alemanha do que na Etiópia ou na Somália, onde não existem recursos. Realmente, se se fazem cortes sucessivos no orçamento para a Saúde, como é lógico, a saúde vai ter que piorar».
Embora os indicadores em Portugal possam «não espelhar exactamente a realidade», para este infecciologista, quem trabalha no dia-a-dia com doentes – nos hospitais, nos centros de saúde, nas consultas – «tem a nítida noção que realmente esta crise económica - a falta de recursos - está a ter consequências no quotidiano das pessoas e até dos cuidados prestados». Portanto, frisa, «isto não está na mesma, está pior, como é evidente».
«Fazer mais e melhor com menos é uma demagogia completa»
Em Portugal qual o impacte da austeridade no sector da Saúde? Para António Sarmento, entre nós, «globalmente, a situação sempre esteve difícil em todos os sectores», e por isso não há nada que garanta que agora está mais fácil do que há quatro anos, pelo contrário. «Não vale a pena as pessoas enganarem-se a si próprias nem enganarem os outros». E sublinha: «Quando vem um governante nosso dizer, ao fim de quatro anos, que “temos que fazer mais e melhor com menos”, é uma demagogia completa, não se pode, só se fôssemos mágicos». E remata: «Depois de quatro anos de cortes, fazer mais e melhor com menos não é possível, se não tínhamos descoberto a pedra filosofal».
Embora acredite que não atingiremos os «dados assustadores» que ocorreram na Grécia com o recuo dos serviços de Saúde, porque «temos um SNS muito mais sólido», «bem implantado» e «assente na competência dos profissionais», o ex-secretário de Estado Adjunto e da Saúde e agora vereador da Câmara do Porto, Manuel Pizarro, que também interveio no encontro, admitiu que, recentemente, os serviços «estão a dar já mais sinal de incapacidade de resposta» porque «o efeito cumulativo das restrições acaba por ter grande impacte no presente, que se vai agravando progressivamente». Por outro lado, sublinha, «não se vêem sinais de preocupação nem tomada de medidas que permitam alterar esta realidade».
Embora não dispondo ainda de dados, o autarca adianta que todos os serviços sociais da cidade do Porto vão dando eco de «situações de agravamento», não só no domínio do abuso de substâncias, mas também pelo aparecimento de doentes com patologia psiquiátrica grave que recusam tratar-se. «Estão a abandonar os tratamentos por falta de uma estrutura de suporte que lhes permita restabelecer os laços sociais e de contacto», avisou Manuel Pizarro, acrescentando: «Temos o direito de exigir a quem toma decisões em matéria de redução desses apoios que faça, ao menos, uma avaliação regular do impacte que isso tem sobre a saúde dos portugueses».
«Se houver menos dinheiro há menos cuidados, é óbvio»
Questionado acerca do impacte da crise económica na área das doenças infecciosas, onde os tratamentos podem atingir custos consideráveis, António Sarmento, director do Serviço de Doenças Infecciosas do Centro Hospitalar de São João, limitou-se a esclarecer: «A saúde custa dinheiro e por isso se este faltar há menos cuidados, isto é, os medicamentos custam dinheiro, depois há os salários, há o rácio adequado de médicos e enfermeiros, que custa dinheiro, portanto se houver menos dinheiro há menos cuidados, é óbvio».
Crise económica «encoraja hábitos de consumo de drogas»
«Todo o ambiente de crise económica e de depressão nacional encoraja os hábitos de consumo de drogas» e «a privação económica dos próprios consumidores faz com que o consumo via injectável seja mais compensatório», afirmou Manuel Pizarro, ex-secretário de Estado Adjunto e da Saúde. O agora vereador da Câmara do Porto, que falava sobre «Dificuldades de adesão às consultas e tratamentos – Causas económicas e sociais» considera que as medidas de contenção de despesa, embora «possam ser compreensíveis» num contexto de emergência nacional, «precisam de monitorização, estudo prévio e avaliação do seu impacto, o que não tem ocorrido».
«Acima de tudo preocupa a alteração do funcionamento de serviços que, para responder a populações excluídas, precisam mais do que o acto técnico da consulta médica», sublinhou.
«Distribuição de seringas passou para metade de um ano para o outro»
«O que foi decidido fazer em matéria de distribuição de seringas, alterando o protocolo com a Associação Nacional de Farmácias e passando [a distribuição] para dentro dos centros de saúde teve, pelo menos, um efeito numérico: a distribuição de seringas passou para menos de metade de um ano para o outro», afirmou Manuel Pizarro, garantindo que «o país vai pagar isso». Para o vereador da Câmara do Porto, «a pequena poupança que existiu nessa mudança vai se paga e não apenas em vidas humanas mas, mais tarde ou mais cedo, pelos custos adicionais dos tratamentos». O que precisamos e devemos fazer então para aproximar pessoas em condição económica de exclusão e da adesão à terapêutica? Para Manuel Pizarro, o importante é «olhar para as experiências bem sucedidas», citando como exemplo o Centro de Terapêuticas Combinadas do Hospital Joaquim Urbano, experiência que, como disse, «merece ser estudada e reproduzida», em que os doentes são abordados de «forma holística», procurando «a sua reinserção e adesão à terapêutica».
«Há mais 200 mil pessoas a viver em estado de privação»
«Não há dados sobre a situação da pobreza na infecção VIH/Sida, mas pode aplicar-se a presunção genérica, como acontece em todas as doenças», ou seja, «é de supor que aqui [a pobreza] acontecerá de forma mais dramática e impressiva», afirmou Manuel Pizarro. O ex-membro do Governo, que falava numa mesa sobre «Não adesão dos doentes aos tratamentos», lembra que mais «assustador do que isso» é que, entre 2010 e 2013, a percentagem de portugueses que ficou em estado de privação material grave aumentou de 9 para 11%. «Parece apenas um pequeno aumento de 2%, mas isso significa que há mais 200 mil pessoas que vivem em estado de privação material grave que, no conjunto, atinge um milhão de portugueses», frisou.
Embora concordando que existam «ideias diferentes» sobre a organização do sistema de saúde, por exemplo, em relação às dependências e ao abuso de substâncias lícitas ou ilícitas, Manuel Pizarro mostra, contudo, que «não é boa ideia» fazer aquilo que designa por «experimentalismo organizacional». E fazê-lo, sobretudo, «numa fase de crise grave», onde é previsível o reacender de vários problemas: «Não há dados fiáveis em matéria de consumo de substâncias ilícitas, designadamente por via injectável – o factor de maior risco do ponto de vista de propagação de infecções - mas todos os dados empíricos apontam para um agravamento do fenómeno», admitiu, acrescentando: «Há dados que apontam para cerca de 14% do consumo de drogas injectáveis já nesta década, dados muito parcelares, no entanto, nos bairros municipais do Porto, em mais de 250 casas, há uma suposição bem alicerçada de existir tráfico de droga e não há tráfico sem haver consumidores.
«Provavelmente estamos a alterar uma curva positiva das últimas décadas de diminuição do peso dos consumos de drogas e sobretudo da diminuição do consumo por via injectável», preconizou, até porque, disse, «há muitas razões para que isso aconteça».
Tempo de Medicina, Manuel Morato , 17.10.14
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