MONTESQUIEU
e
A LIBERDADE
Uma relativa igualdade social, só existe, para
Montesquieu, em sociedades não
desenvolvidas, em igualdade, na pobreza e na austeridade.
Nas sociedades modernas, com
populações mais desenvolvidas e territórios mais amplos, a procura do interesse
pessoal e particular contribui para o bem-estar geral, como se viu; faz nascer
novas fontes de riqueza, que a todos beneficiam, mas que podem aprofundar as
desigualdades.
Liberdade e propriedade andam unidas. "o espírito de liberdade
inspira o espírito de propriedade.” Todo o regime moderado que garanta a
liberdade dos indivíduos deve igualmente, garantir a “segurança e o desfruto
dos seus bens".
Mas Montesquieu deriva esta propriedade, não
da natureza, como fizera Locke, mas das leis civis.
Do mesmo modo que os homens
renunciaram à sua independência natural para viver debaixo de leis políticas,
renunciaram, também, à comunidade natural dos bens, para viverem sujeitos a
leis civis.
Em qualquer caso, Montesquieu
junta-se à crítica desqualificadora da propriedade de "mãos mortas",
que não contribui para o circuito de produção de riquezas, assim como à
consideração económica do trabalho. "Um homem não é pobre porque não tem
nada – afirma – mas porque não trabalha”.
O trabalho não é; nem expiação, como
era na mentalidade tradicional medieval, nem tão-só uma distracção, no sentido
“pascaliano-religioso”: é um fim, no
qual o homem se torna dono, em parte, do seu destino. É a sua própria previsão,
e não o "mistério" providencial, o que guia a sua vida. Unindo o
valor económico com o valor moral do trabalho, assegura que não há felicidade
para a alma individual se não está ocupada nalguma coisa, e essa utilidade
individual é, também, utilidade social; a natureza pode ser sempre vencida pelo
trabalho e pela ação do homem.
Por outro lado, Montesquieu insiste no dever de o Estado
proporcionar trabalho e assistência aos seus cidadãos, unificando, também,
certas práticas paternalistas e protecionistas das monarquias do Antigo Regime,
com a interpretação moderna de um Estado equilibrador dos interesses.
Esta fundamentação moderna da
propriedade e do trabalho, teorizada magistralmente, por Locke e adotada pelo
pensamento ilustrado e nas suas linhas mais significativas, Montesquieu supunha também, uma nova
valorização das formas de riqueza.
Mesmo que a propriedade territorial continue a
manter o seu prestígio imenso, a riqueza imobiliária, o dinheiro e a sua
circulação económica convertem-se no núcleo dinamizador da riqueza das Nações.
Assim se compreende a defesa do luxo, numa sociedade moderna, como
impulsionador do comércio e, portanto, credor de riqueza.
Sem dúvida, há sempre uma
reserva, em Montesquieu que situa
noutro plano do puramente político e económico, o afã de acumular riquezas e
ganhar dinheiro. Se a sociedade moderna deve ser entendida, nos seus mecanismos
e, se há que reconhecer tecnicamente os seus ecos para que dê de si o melhor
que pode produzir (tendo sempre em conta os limites próprios da condição
humana), ao mesmo tempo que se controla o poder público, e com tudo isso se
favorece a liberdade dos indivíduos, não há que enganar-se tampouco
relativamente aos custos. Nunca há ganâncias absolutas, na história, segundo Montesquieu.
Já vimos que, no seu elogio ao
comércio, assinalava na altura, a desumanização classificativa dum espírito de
comércio radical (trafica-se com tudo, inclusive as coisas mais pequenas, que
se fazem ou se trocam por dinheiro) e que, ainda que o comércio suavize os
costumes e, inclusive, introduza um certo sentido de "justiça estrita"
e leva consigo a paz entre as Nações – ao torna-las, "reciprocamente
dependentes " – também faz perder o sentido de hospitalidade, de maneira
que o que une as Nações, não une, de igual modo, os particulares.
Relativamente ao dinheiro, se
rastreia a mesma reserva: esta pode multiplicar os desejos, até ao infinito, e
quiçá, por isso, no plano individual e privado, para ser feliz, como aconselha
o seu neto, há que saber possuir um controlo dos desejos, que costuma estar
vinculado, à ausência de ambição monetária.
Mas, note –se, que este conselho
moral circunscreve-se, no âmbito do privado; nem como fórmula de felicidade,
nem como norma de moralidade, ocorre a Montesquieu,
elevá-lo a norma social ou sonhar impô-lo a todos. Longe, todavia, do utilitarismo e psicologismo de certas
correntes do pensamento liberal do século XIX, este primeiro liberalismo do séc. XVIII, que encarna;
Montesquieu não tem fórmulas gerais
de felicidade, para todos e limita-se a expor as vantagens da moderação, na
política – para a qual, recorde-se, se apoia em instituições reais e não em
conselhos morais – é nas vantagens de um ideal de justiça, de funda raiz
clássica, que, no caso do presidente, não é uma vulgar mediocridade, senão a
procura constante de um equilíbrio por definição instável e incerto.
2.2.2 A liberdade Legal
De muitas maneiras, como se viu,
se pode entender a liberdade. Montesquieu
trata, muito especialmente, este tema central, no famoso livro XI do Espírito das Leis,
em cujo cap.6 trata expressamente,
da separação de poderes, em Inglaterra, e continua a sua análise no capítulo
seguinte. Apoia-se aí, para a distinção básica, entre "as leis que dão origem à
liberdade política em relação à constituição, ou daqueles que o fazem
relativamente ao cidadão".
Esta distinção é crucial, pois os
dois tipos de lei são complementares e solidários para preservarem a liberdade dos indivíduos. Com efeito, para que esta
se realize é necessário, não só que o cidadão
seja livre, como que viva numa comunidade
livre. Na Constituição dessa comunidade livre, a liberdade política, só está garantida pela existência de uns mecanismos institucionais, mediante os
quais – segundo fórmula feliz – “O poder trave o poder”; as
leis em relação com os cidadãos, isto é, as leis civis, só garantem, por sua
vez, a liberdade destes, quando garantem a sua segurança. Pois "um homem é
livre, na medida que acredite, com justiça, que o furor de um só ou de muitos não lhe roubarão nem a vida nem a
propriedade dos seus bens” e, ainda, na medida em que a presunção da sua inocência não é violentada por leis
ou decisões arbitrárias de ninguém.
Assim, portanto, a partir do
imperativo de que só é possível numa ordem
social garantir a liberdade natural
dos indivíduos, através da eliminação da arbitrariedade, é necessária; a liberdade civil, que proporciona a tal segurança sob critérios objetivos de previsibilidade
legal, do abuso do poder.
Mas as leis, sabemos que não são
mais do que “as relações necessárias que
derivam da natureza das coisas”, de maneira que o seu funcionamento, não
depende simplesmente, de um ato de impulsão voluntária, mas sim do acomodo e
consentimento de todos os que as vivem. Dito de outra maneira; a liberdade política e a liberdade
civil, a liberdade da coletividade e a liberdade de cada cidadão não podem
dissociar-se nunca. Pode haver, se se dissociarem, diz Montesquieu, constituições livres, que não correspondam a cidadãos livres. E vice-versa; pode suceder "que o cidadão seja livre e a constituição não ".
Inclusive "pode aniquilar-se por lei, como se elimina pela espada
". Ou pode haver, até, tirania; e não há “tirania mais atroz – refere – do
a que se exerce à sombra das leis, sob
as cores da justiça”.
Por fim, para garantir a
liberdade dos cidadãos não basta uma boa constituição; é preciso combinar
determinadas leis civis com "costumes,
hábitos e exemplos concretos herdados”.
O que hoje apelidamos de forma simples "Estado e sociedade civil " como
duas esferas interdependentes e diferenciadas, estão implicitamente
consideradas, por Montesquieu, nas suas reflexões
e análises sobre a liberdade.
A liberdade política e a sua
relação com a constituição
Que implica primeiramente; a liberdade política relativamente à
liberdade constitucional?
Montesquieu refere que, nessa atribuição polivalente de
significações, que se deu à palavra "liberdade",
a tendência é para acreditar que nas repúblicas havia mais liberdade do que nas
monarquias, porque se confunde "o
poder do povo com a sua liberdade". Ou dito de outra forma;
confunde-se a participação política
das repúblicas antigas, com a liberdade
dos indivíduos, para viver sem obstáculos, isto é; para viver uma liberdade
de acordo com a lei.
É certo, escreve, que nas
democracias, parece que o povo faz o que quer; mas a liberdade política não
consiste em cada qual fazer o que lhe apraz. Num Estado, isto é; numa
sociedade em que há leis, a
liberdade só pode entender-se em poder
fazer o que deve pretender e não
estar obrigado a fazer o que não se deve querer fazer.
E termina: - Há que tomar
consciência do que é a independência e a liberdade.
A liberdade é o direito de fazer
o que as leis permitem, de modo que se
um cidadão pudesse fazer o que as leis proíbem, já não havia liberdade, pois os outros teriam igualmente a
mesma possibilidade.
Definição canónica do que virá a
ser com o tempo um Estado de Direito.
A independência ou liberdade filosófica – o exercer cada um a sua vontade própria – é diferente da liberdade política, que "consiste na segurança ou pelo menos na
ideia que se tem da própria segurança"; isto é; na segurança que o
exercício da vontade dos outros não invadirá ou anulará os meus direitos
próprios e que o espaço de convivência determinado pelas leis, não será
violado, por uns, em detrimento dos outros.
Só esta liberdade, chamada com
propriedade e um tanto equivocamente "liberdade
negativa ", garante ao indivíduo um espaço próprio,
rodeado e protegido pelas leis, com uma capacidade de resistência e regras de
jogo, onde ninguém possa ser obrigado
a fazer uma coisa que a lei não ordena.
A democracia e aristocracia, prossegue Montesquieu, referindo-se
às repúblicas antigas de
participação cidadã, não são Estados
livres, pela sua natureza. A liberdade política não se encontra, senão
nos Estados moderados; ora bem, nem sempre aparece neles, a não ser quando
não se abusa do poder. Mas é uma experiência eterna, que todo o homem,
que tem poder, sente a inclinação para abusar dele, indo até aos limites, que
encontre.
Quem diria! A própria virtude precisa de
limites.
Tal como se disse, anteriormente,
não há aqui, nenhuma nostalgia da república agrária, ou da tradição do "humanismo
cívico "; enquanto a sociedade para viver como indivíduo e como
cidadão, Montesquieu mostra claramente, a sua preferência por um regime
de liberdade legal face a outros
possíveis, nos quais o controle do poder, e quer seja um homem ou a assembleia
de todos, também esta pode cair com facilidade, na tirania através da
demagogia, não está assegurado. Pois, como refere, um tanto ironicamente, a
propósito da virtude, todo o poder, ou seja, todo o homem, com poder, seja ou
não virtuoso, e provenha a sua legitimidade da sua decisão soberana, ou de
decisões maioritárias, tende para o abuso, pela sua própria natureza e precisa de limites.
Estes vêm dados por mecanismos
institucionais, que representam um "um esforço de imaginação e
arte" nos regimes moderados. "Para que não se possa abusar do
poder ė preciso que, pela disposição das coisas, o poder trave o
poder.
Uma Constituição pode ser
construída de maneira que ninguém seja obrigado
a fazer coisas não prescritas pela lei, e a não fazer as legais ".
É aqui, que Montesquieu introduz o
modelo da Constituição inglesa, com
a separação dos seus 3 poderes
(legislativo, executivo, e judicial), sobre este tema, voltaremos a ele.
Por agora basta reter a garantia para a existência da liberdade política é, em qualquer caso; uma pluralidade de poderes e
que, neste sentido, a liberdade política
pertence a qualquer tipo de regime, seja o inglês, da separação de poderes ou o
da monarquia francesa dos poderes
intermédios, e "não está mais afastado do trono, que do senado".
A liberdade política em
relação com o cidadão.
Não pode existir liberdade
política, como se viu, sem que, além dessas leis fundamentais que organizam uma
"certa distribuição dos 3 poderes
", existam também leis civis,
que garantam a segurança (ou a opinião que cada um tem da sua segurança) do
cidadão, de forma que este seja, realmente, livre de facto e de direito.
E não apenas, determinadas leis
civis, favorecem a liberdade, senão, em função do caráter interdependente de
toda a sociedade humana, "os
costumes, os hábitos e exemplos captados ", as leis penais, devem convergir, na mesma direção.
A proteção da intimidade dos
cidadãos é fundamental e Montesquieu esforça-se por
demonstrar a inutilidade da espionagem, num regime jurídico assegurado:
Quando um homem é fiel às leis,
satisfaz os seus deveres para com o príncipe. É preciso que tenha ao menos a sua casa por
asilo e o resto da sua conduta assegurado. À espionagem seria
quiçá tolerável se fosse exercida por pessoas
honestas, mas a infâmia necessária
da pessoa pode dar uma ideia da infâmia da coisa
Não há que esquecer a tendência
natural humana, para o abuso e,
portanto, ninguém é, por assim dizer, suficientemente honrado para imiscuir-se, na
vida privada e dos cidadãos, acima do círculo das leis.
A Montesquieu interessa
recalcar essa separação de âmbitos; referindo-se aos presumíveis delitos de pensamento, o presidente rejeita
tal classificação como verdadeiros atos tirânicos:
"As leis, só se encarregam
de castigar as ações exteriores
". E, usando um mito alegórico - o de Dioniso assassinando Marsia por
ter sonhado que assassinava Deus, recalca o caráter de tal ato tirânico exprime
significativamente: "é preciso que
o pensamento se una a um género qualquer de ação."
Não só o pensamento não criminaliza, como as palavras, até se
materializarem, em atos. Contra o delito de lesa-majestade por palavras
indiscretas, muitas vezes transmitidas por outros e, portanto com a
possibilidade de más interpretações,
indica que as palavras não formam corpo
de delito, não vão, além da ideia. Na maioria dos casos, não têm
significação, só por si, senão pelo tom em que se dizem. Costuma suceder que,
ao dizer as mesmas palavras, não se lhes dê o mesmo sentido... Por vezes, o
silêncio é mais expressivo do que todos os discursos.
E algo de parecido, se passa com
a escrita, especialmente, com os
satíricos: se o medo e a ignorância os torna inexistentes, num Estado despótico, nas democracias e, nas
monarquias proliferam, mas
nestas são – ou devem ser – “matéria de
polícia, mas não de delito",
e, em ambos os sistemas, "podem
dividir a malícia geral, consolar” .
E sempre foi possível medir-se o
grau de liberdade de um regime, pelo grau de liberdade de expressão dos particulares:
Para gozar de liberdade é preciso
que todos possam manifestar o seu pensamento; mas para conservá-la o
processo é idêntico: um cidadão, num Estado destes dirá e escreverá tudo,
quanto as leis não proíbem expressamente, dizer ou escrever.
E já sabemos que estas leis, num regime livre, não podem ser
produto arbitrário do poder, mas estão na "natureza das coisas", no próprio "espírito geral" duma Nação. Mui significativamente, Montesquieu
refere que outra medida de liberdade é, sem dúvida, a das mulheres: num regime despótico,
as mulheres vivem em servidão; num regime moderado, como a monarquia, impera
"a liberdade das mulheres ".
Com efeito, nem a declaração
caluniosa, nem a acusação, através de cartas anónimas ou outro processo
similar, nem qualquer deste tipo de práticas contra os particulares, podem
realizar-se num regime moderado, num sistema de liberdade. Melhor ainda, esses
usos têm que voltar-se, pela lei, contra quem os usa (e lembra a marca que se
punha, nos falsos acusadores e caluniadores, na Roma republicana) ou, pelo
menos desacreditá-los, completamente.
Não obstante, pode haver
ocasiões, nas quais a liberdade individual, entre em colisão com a liberdade
coletiva e, ainda quando "a força
da lei " radica em "estatuir
para todos ", Montesquieu observa, sem dúvida, que
"nos Estados, em que se dá mais
impotência, à liberdade, há leis que a moderam, quando se trata de a liberdade
individual, para conservar a de todos". E cita o caso dos bills ingleses, do desânimo ateniense,
ou os "privilégios" na Roma republicana; em todos estes casos, por vezes,
há leis que atentam contra cidadãos particulares. "Confesso, termina, que o uso dos povos mais livres do mundo, me leva a
crer que há casos, nos quais, por um momento, se deve pôr um véu à liberdade,
do mesmo modo que se ocultam as estátuas dos deuses ".
"Que nos deixem ser como
somos "!
Na sua reflexão sobre esse
possível "véu à liberdade
", e em geral, em toda a sua análise e comparações, entre os regimes republicano e monárquico, Montesquieu
deixa transparecer o antagonismo entre dois tipos de liberdades: por um lado, a liberdade do mundo antigo,
correspondente a sociedades de tipo holístico,
em que o grupo prevalece sobre o indivíduo, isto é; a liberdade de participação (ou liberdade positiva) ideal, também do humanismo cívico, e, por outro lado, a
liberdade do mundo moderno ou liberdade sob a lei (liberdade
negativa), que dá primazia ao
indivíduo sobre o coletivo.
Enquanto que a primeira (a
negativa) leva consigo a ideia do dever e do serviço ou participação, no
público, a segunda ( a positiva) parece "libertar"
os indivíduos de toda a obrigação político-social que não seja satisfazer o seu próprio interesse.
Montesquieu percebeu esta dicotomia e, ainda que a sua aposta, por
um sistema de liberdade que se incline claramente, para a defesa dos indivíduos,
perante as intromissões do poder ("nada
fazemos melhor - escreve - que aquilo que fazemos livremente conduzidos pelo
nosso caráter natural "), também o preocupa o alheamento dos indivíduos, para com os assuntos públicos.
Se, como se viu, nada lhe causa
mais pavor que as "decisões
universais" e de forma expressa um dos capítulos do seu livro XIX de “Esprit des Lois” com o lema, "não há que corrigir tudo ", e se, também, como se expôs, a liberdade não pode ser - nem sequer
ela - o objeto de coação (nada mais distante do seu desejo e pensamento que o peremptório: " obrigar a ser livres " de Rousseau e do voluntarismo revolucionário),
vislumbra os perigos duma possível
sociedade atomizada:
Os cidadãos, anota nos seus cadernos, referindo-se ao mundo antigo,
estavam unidos aos cidadãos por todo o tipo de vínculos:
Estavam enleados uns nos outros
por seus amigos, por seus libertos, seus escravos, seus filhos.
Hoje, tudo isto desapareceu, inclusive o poder paterno: cada
homem está sozinho
Um isolamento que pode ser utilizado por um poder arbitrário:
"Parece que o efeito natural
de todo o poder arbitrário foi o de particularizar
todos os interesses”
Participação e solidariedade unem-se num sistema baseado na virtude
cívica, na subordinação do interesse particular ao interesse geral.
Pelo contrário, a liberdade do indivíduo ficava, apenas,
sem espaço para se expandir; a austeridade,
a fragilidade, a frugalidade, a vigilância dos magistrados e dos demais
cidadãos, "obrigavam" o cidadão a
essa liberdade de participação.
No
mundo moderno, e sem nostalgia de paraísos fictícios, Montesquieu concebe o homem como individualidade livre ("somos livre e imprevisíveis ", e
com a única finalidade de ser feliz,
mas aflora a sua preocupação por um
indivíduo isolado e não solidário e desinteressado dos assuntos públicos, face ao
qual um poder arbitrário (e todo o poder tende para o abuso,
segundo insistiu) tenderá sempre a "particularizar os interesses ", a dividir e "uniformizar " a sociedade em
benefício próprio.
Face a este perigo, a insistência
de Montesquieu,
nos mecanismos de um regime moderado - sejam poderes intermédios, como a monarquia francesa, ou separação de poderes, como na inglesa -
possibilita a inter-relação, em defesa do indivíduo, entre a liberdade negativa moderna e a necessidade de participação pública (o público não se confunde, na obra do presidente, com a estatal)
para garantir essa liberdade.
A intervenção ativa dos cidadãos,
ou pelo menos duma parte significativa dos mesmos, no controlo, vigilância e
funcionamento desses mecanismos, parece a Montesquieu evidente.
Ou dito de outro modo, a
preservação da liberdade pessoal exige um tipo de regimes, nos quais a ideia de
serviço
ou participação pública não
esteja excluída. Só somos livres se
estamos seguros, mas só podemos ter um grau suficiente de liberdade e de
segurança, se participamos, por um lado, no controlo ativo dos mecanismos do
poder e, por outro, se de alguma maneira, se possui interiorizada - por educação, costumes, hábitos - uma
vivência de liberdade.
Só desta maneira o cidadão será
livre: como indivíduo livre numa comunidade livre. A liberdade legal é simultaneamente; fim e meio para o indivíduo, pois o barão de La Brède nega-se, na mesma
linha, que os ilustres do seu tempo, a submeter-se a um direito, que tenha a
sua origem numa subjetividade coletiva
(como Starobinski assinalou, a
propósito da "vontade geral
", ou o "eu comum
" rousseauniano). Só esta liberdade
negativa protege e garante simultaneamente a singularidade e a pluralidade dos indivíduos. Mas é a singularidade que, para ser preservada,
não se entende fora do coletivo. Se
a democracia direta é impensável - pelo próprio desenvolvimento demográfico,
económico e social, como constata Montesquieu, mas também, porque o desenvolvimento da aspiração individual, à
liberdade torna incompatível, a virtude
cívica do desprendimento e a austeridade
com o interesse privado e a mobilidade social, se é possível uma participação mediana dos
indivíduos através dos "representantes " dos poderes intermédios
e dos controlos, sobre a separação
de poderes (inclusive o presidente insistirá, num mandato representativo, que
permite tomar decisões com agilidade, face a um mandato imperativo, próprio das
democracias antigas e da época medieval.
Assim, sua "que
nos deixem ser como somos " não significa neste contexto, nenhum
tipo de imobilismo, nem tão-pouco, de exclamação libertária, não solidária,
senão de defesa da natureza humana, na confiança - não incompatível, com o seu ceticismo - de que o bom sentido de uns
determinados cidadãos socializados, por assim dizer, num determinado "espírito geral ", podem e devem
exercer a sua liberdade sem desconhecer a força da "natureza das coisas ".
Assim se atua, moral e
politicamente, em planos distintos, mas que convergem, na liberdade do
indivíduo.
2.2.3 O DESPOTISMO
O terceiro tipo de regime político é na realidade, segundo Montesquieu,
o anti-modelo de governo. A natureza do poder despótico consiste no exercício
desse poder por um só homem, não
submetido à lei, por isso governa
arbitrariamente ou "abandona"
o poder nas mãos de favoritos ou ministros.
O princípio deste regime é o temor,
ajudado pela corrupção mais
espantosa, pois permanece sempre oculta.
Num sistema despótico, há a
igualdade mais absoluta, mas é uma igualdade que despoja os homens da sua humanidade contrária precisamente, à igualdade legal:
"Todos os homens são iguais no
governo republicano, assim como no despótico: no primeiro, porque são tudo;
no segundo, porque são nada". Neste caso priva-se o homem
de toda a liberdade política, para poder convertê-lo, num objeto de arbitrariedade duma vontade, que não corresponde a
qualquer norma, nem jurídica, nem
natural: nem sequer é o prolongamento do poder paternal, que se bem que não
legitima, não obstante, o poder político (Montesquieu separou, sempre e de
forma nítida, o poder paterno e familiar
do espaço privado relativamente ao poder
político, no espaço público) é, pelo menos, natural. Simplesmente, o poder despótico é um atentado, contra a
natureza humana e causa ao homem "males
espantosos".
Se o retorno ao despotismo, a partir duma perspectiva
cortante, também o é, em Montesquieu, o regresso a partir
duma linha pragmática ou estritamente política. Não só provoca males
frequentemente irreversíveis (um povo acostumado à submissão despótica,
dificilmente aprenderá o uso da liberdade). “Dialogue de Sylla et d'Eucrate, dossier” E. L.,404) como nem sequer
reúne as mínimas de eficácia
política. É um governo instável, inseguro, sempre sujeito a revoltas e
conspirações. Um governo que elege a simplicidade
bárbara e a uniformidade, face à
complexidade do real: "Quando
os selvagens da Luisiana querem colher um fruto, arrancam a árvore pela raiz, e
colhem-no, depois. Eis aqui, o governo
despótico ". Um governo destes "salta aos olhos" e
"como para estabelecê-lo, bastam as
paixões, qualquer um pode formá-lo". Não conhece a paz, senão o
silêncio das cidades " dominadas
pelo medo, que não tem limites: a dor tem-nos, sempre, mas o medo, que já não é físico, mas psicológico, pode ser ilimitado.
A obediência cega dos súbditos, nos regimes despóticos, provoca
inclusive a sua própria destruição: se Atahualpa, Manco Inca, Moctezuma,
Guatimozin, não tivessem sido obedecidos pelos seus súbditos "como rebanho de carneiros", capazes
de parar a luta a uma só palavra do seu caudilho, cento e setenta espanhóis não teriam podido conquistá-los ".
Face ao despotismo, um governo
moderado supõe um esforço de imaginação e de técnica. E aqui, radica a principal
finalidade de Montesquieu, na
exposição do regime despótico:
Se o governo republicano era coisa do passado,
o que preocupa o mundo moderno é a possibilidade de que as monarquias deslizem para o despotismo. Ou, dito de outra forma;
que não haja governos moderados que
garantam a liberdade política. Entenda-se, o despotismo, e insiste, em que
a sua natureza, só pode desenvolver-se, em territórios e climas mais extremos,
num "espírito geral " que
resulta de novo, de uma complexa estrutura, de causas físicas sociais e históricas,
sua análise e reflexão política está, continuamente, a anunciar o perigo de perda ou renúncia da
liberdade, nos regimes europeus
contemporâneos.
A advertência de Montesquieu não engloba, somente, um despotismo declarado, mas também, como
se viu, avisa contra as ditaduras
encobertas, que podem existir, através de leis com aparência de justas. Ou
pode exercer-se uma tirania atroz,
sob a aparência da justiça (considerações sobre... Romanos). Seu
regresso aos grandes homens, aos grandes salvadores da pátria, aos conquistadores,
tem que ver com a sua desconfiança nos caudilhos que, sem limites no seu poder,
levam os seus povos à ruína. Ruína
física, moral e material, pois a prosperidade dos estados despóticos, cai
pela própria insegurança e imprevisibilidade das decisões arbitrárias do poder.
Regime que corrompe sem cessar
" porque, já comporta, a corrupção,
na sua natureza" e que se mantém, tão-só, quando, "as
circunstâncias do clima, de religião, da situação do génio do povo, obrigam a
seguir uma ordem determinada e a suportar alguma regra ", mas, mantendo
sempre, a sua ferocidade, e só, às vezes, refreado
pela religião.
Mas essa mesma tirania,
essa imposição duma vontade caprichosa, que não conhece leis, nem respeita
costumes, esse abuso de poder, não
só pode radicar num só homem, ou num conjunto, ou numa maioria.
Montesquieu analisou
algumas das causas da corrupção das
democracias antigas; no sistema democrático, toda a lei é vontade do povo, mas nem toda a vontade do povo é lei;
no momento em que se confundem estes termos, a democracia cai na demagogia e na corrupção:
Não só, quando perde o espírito
da igualdade, como também, quando se adquire um espírito de igualdade
extremada, e quando cada um
adquire ser igual àqueles a quem escolheu para governar. A partir desse
momento, o povo, já não poderá suportar o poder, que ele mesmo confia a outros,
quererá fazer tudo por si mesmo, deliberar
como se fosse o senado, executar em lugar dos magistrados e despojar das
suas funções todos os juízes.
Isto é, acumular todos os poderes,
sinal máximo da tirania; um dos maiores abusos das repúblicas antigas era,
precisamente, o chegar a ser "juiz
e acusador", num só momento.
Não só, portanto, se impõem os
regimes despóticos com uma manipulação dos cidadãos pelo poder, através do medo e da corrupção, como
também, se impõem, pela ambivalência própria da natureza humana: apesar do amor
dos homens à liberdade, existe neles um secreto
desejo de repouso de submissão e o pior do despotismo é, precisamente,
que, ao fomentar esses desejos, destrói
até as possibilidades futuras de liberdade.
Montesquieu adverte para o
círculo destrutivo, que se cria entre dominador e dominado, a dialéctica amo-escravo e o perigo duma interiorização
dos cidadãos: enquanto "nas monarquias a educação tende,
somente, a elevar ao mínimo, nos estados despóticos,
somente, procura abatê-lo”; uma educação
servil interessa, sobretudo, a quem manda, pois "ninguém é tirano, se não é ao mesmo tempo escravo ". O
exemplo de Calígula, ao suceder a Tibério, é significativo:
Dele diziam - «escreve nas
Considerações sobre...Romanos, xv »; que
nunca houvera melhor escravo, nem pior amo. Estas duas coisas estão
bastante unidas; porque a mesma disposição de espírito, que faz humilhar-se,
diante do poder ilimitado de quem manda,
impulsiona, quando se alcança esse poder, a abusar dele, (poder).
Por isso, "não se trata
de destruir ao que domina, mas à dominação ". Se, em Roma, perdurou,
depois de Sila, a ditadura; foi porque os golpes
se davam contra os tiranos, não
contra a tirania. Não se pode exigir dos homens uma moralidade baseada
em boas intenções; há que fundamentar, como se viu, mecanismos, que
limitem essa tendência para o abuso, na natureza humana e que tenham uma
condição; "que o poder trave o
poder " , enquanto as leis
civis e os costumes contribuem, para o fortalecimento interior da liberdade
nos cidadãos.
Só um governo e uma sociedade
"moderados " são
capazes de lutar, eficazmente, contra a tendência para o repouso (não-te-rales-que-alguém-fará-isso-por-
ti), à simplificação e ao abuso que representa o
despotismo.
3. REGIME MODERADO E PLURALIDADE SOCIAL
OS PODERES INTERMÉDIOS E A
TEORIA DA SEPARAÇÃO DE PODERES
Na análise dos tipos de governo,
a conclusão do presidente é clara: só é possível a liberdade política dos
cidadãos num regime em que, com a frase, justamente célebre, "o poder trave o poder”.
Um regime temperado, equilibrado institucionalmente, expor grupos
sociais, por grupos de interesses, por travões e contrapesos, intencionalmente
construídos. Montesquieu não se limita aqui, à ideia clássica do "meio justo", mas defende algo mais
complexo: a
manutenção duma tensão de imperativos opostos, a assunção da diversidade e dos
conflitos, que se originam na pluralidade.
Todo o regime que preserva
essa pluralidade de interesses e de poderes, entra na categoria de "moderado";
aquele que não a respeita, cai no despotismo
.
A questão não é já, portanto,
como na teoria clássica política, quem deve governar ou qual é a melhor
forma de governo, mas sim; que houve um desprezo da ideia de unidade e de pluralidade e do critério
técnico da moderação . Por este, podemos calibrar o grau de liberdade
de um povo, em geral e de seus cidadãos, em particular.
E dado que tal liberdade pode ser
violentada; tanto por regimes democráticos,
como por regimes aristocráticos ou
monárquicos – com exclusão, claro está, dos que a violentam, por natureza como são os despóticos –, se infere, para Montesquieu, que pode, quiçá,
existir um bom governo – se está baseado nessa moderação e esse controlo dos
limites –, mas nunca pode existir o melhor, o uno, de
fórmula universal e aplicável, sem erro, em qualquer tempo e lugar.
Trata-se, portanto, de articular
as instituições, nas quais o equilíbrio e a tensão política estejam sustentados, pelos interesses dos cidadãos e pelos diversos grupos sociais. Trata-se, por fim, de ter sempre, em conta,
a "natureza das coisas", o
"espírito geral" duma Nação
e, sobre essas premissas realistas,
manter a estruturação de uma pluralidade social, capaz de tolerar as divergências, enquanto o poder político se exerce
como um poder de concorrência com outros poderes – aos quais anula, ainda que tenha, sobre eles, o
direito de exigir dos cidadãos uma obediência
preferencial.
Não basta, portanto, para que
exista um governo e uma sociedade, que garantem a liberdade,
que esta figure nas leis; é necessário, também, que existam as condutas reais dessas leis,
através dos corpos políticos
intermédios, da divisão de
poderes, de maneira que os 2 sistemas expressem uma realidade social,
subjacente, com caráter plural.
No Antigo Regime e na primeira
metade do século XVIII, em que vive Montesquieu,
esses corpos intermédios não podiam ser outros senão a nobreza, o clero e os parlamentos. E Montesquieu examina-os como poderes "subordinados e dependentes ", com
determinadas funções sociais e políticas, num regime monárquico, no qual se
governa por meio de leis fundamentais:
Estas leis fundamentais supõem,
necessariamente, certos canais intermédios por onde flui o poder, pois se
no Estado não houvesse mais que a vontade
momentânea e caprichosa de um só, nada poderia ter fixidez e, por conseguinte, não
haveria nenhuma lei fundamental.
Esses 3 poderes intermédios,
que não há que confundir com as 3 Ordens dos Estados Gerais do Antigo Regime,
evitam a acumulação de poder num único órgão do Estado, especialmente,
evitam que a função legislativa e a
judicial se unam ao executivo. É o que o
diferencia dos estados despóticos; pois, enquanto que, nestes, "o príncipe pode
administrar a justiça por si mesmo ", não é isso que acontece
no governo moderado, pois neste
caso, a constituição ficaria anulada.
Para formar governo moderado, insiste o presidente, há
que combinar os poderes, regulá-los, temperá-los, pô-los em vigência; por lastro, por assim dizer, ao governo,
para que possa resistir ao presidente; é uma obra mestra da legislação.
Montesquieu descobre, na
constituição inglesa, outra forma de governo moderado. A prática e a teoria
inglesas conseguiram, com algum esforço, esse equilíbrio difícil, entre a liberdade e a ordem, através, não só, da separação
dos 3 poderes: legislativo, executivo, e judicial, mas também, graças a
uma série de leis que garantam a liberdade individual do cidadão (habeas corpus, liberdade de expressão e de
opinião, leis penais proporcionais, aos
delitos e conhecimento público delas, etc) .
Ainda que Montesquieu tenha
expressado as suas reservas, relativamente a um regime que, segundo o seu
cálculo, tendia, excessivamente, para a centralização, em prejuízo da
diversidade, a elaboração do seu modelo foi, quiçá, a formulação técnica de
maior influência, no mundo ocidental, para a preservação da liberdade política, através da divisão de poderes. A não acumulação dos 3 poderes, num só órgão, depende, no modelo inglês, não só das
garantias jurídicas, como,
essencialmente, da existência das forças
sociais, que mantêm; tensão, travões e contrapesos,
de uns poderes, sobre os outros.
Noutro lugar ocupei-me do
funcionamento detalhado destes 3 poderes
e da distinção e inter-relação fundamentais, evidenciadas por Bernard Manin, entre funções e órgãos, nos referidos 3
poderes.
Agora importa reter,
definitivamente, que, por diferentes caminhos, um regime político, como é o
inglês; baseado na separação de poderes
intermédios, como a que Montesquieu deseja para França
(sempre no fundo da obra do presidente, o temor à volta de um absolutismo, como
o que exerceu Luís XIV) tem uma mesma base plural e uma mesma finalidade: salvaguardar a liberdade dos cidadãos.
III. OS PRINCÍPIOS DE UM REGIME DE LIBERDADE.
CONCLUSÕES
O exame dos feitos humanos tal como são, e não como deveriam ser,
conduziu a análise, que Montesquieu realiza, ao longo da sua
obra, na evidência de que, na prática, política e moral não coincidem. Se já desde os seus
escritos da juventude (da política,
cartas persas, tratado dos deveres) , essa não coincidência aparecida, como
evidente, nas suas obras da maturidade (Considerações
sobre...Romanos, Espírito das leis) o presidente esforça-se por compreender
as razões dessa incompatibilidade.
Mas também, desde esses primeiros
escritos, à grande elaboração do Espírito
das Leis, Montesquieu parte da
premissa de que a liberdade
individual e virtude caminham lado a lado. Sem liberdade individual não há possibilidade de opção moral e constata, na história, que igual corrupção corrói amos e escravos,
pois não são mais que caras diferentes da mesma moeda: o despotismo.
Para ele, podem deslocar-se
determinadas tendências da natureza humana: propensão para o abuso, a
inclinação para o repouso, a inércia das situações estabelecidas.
Um pessimismo moral, que, sem dúvida, está contrabalançado, por outras tendências da condição humana: o amor à
liberdade, a necessidade de significação num universo moral, o amor à ordem.
A necessidade de leis é evidente,
para reforçar, do exterior, as
melhores inclinações interiores. Mas
estas leis, não podem ser fruto de qualquer afã voluntarista, ainda que, com as melhores intenções. Tentar impor a virtude a partir do poder (por
decreto), (como tentar "impor" ou “obrigar" à liberdade) é um contra-senso,
um paradoxo, sem solução.
Nem a vontade dos indivíduos, nem qualquer fatalismo cego explicam, na totalidade, as ações dos homens e a
evolução histórica das sociedades humanas. Ou melhor;
é uma complexa rede, que ele denomina, como se
viu, de espírito geral (senso
comum(?)), o que forma uma espécie de calhamaço
histórico sobre o que a liberdade do homem se move nos seus interstícios,
enquanto os transforma e muda a direção dos suas linhas. Mas é uma mudança que,
com frequência, produz efeitos imprevisíveis,
em todas as suas consequências.
Nessas mudanças, e em geral, no
que chamamos interacção social, os
indivíduos movem-se fundamentalmente, pelo seu próprio interesse. A virtude
política, ou seja, a consideração do interesse geral sobre o interesse particular, não é já, se é
que alguma vez o foi, no mundo antigo idealizado, o elemento da coesão social, ou de ordem, na qual os
cidadãos desdobrem a sua liberdade. Nenhum governo, nem nenhum governante,
modificou alguma vez a sua conduta por exortações
morais e isso não é por especial perversão dos políticos, mas porque está
escrita na natureza
humana; a tendência para ultrapassar os limites, a tendência para o abuso.
Por isso, há que pensar, em
mecanismos institucionais, que limitem o
poder e estabeleçam regras técnicas e objectivas, através das quais, o
cidadão desenvolva a sua liberdade, nos espaços e âmbitos privados e
públicos. A pluralidade, a diversidade social, a liberdade negativa ou liberdade
legal, são os factores básicos para assegurar um regime de liberdade ou regime
moderado. E neste regime, em que poderá desenvolver-se de forma natural,
por força e acção da sociedade sobre si própria, “comentava Raymond Aron: a virtude que Montesquieu
considera imprescindível para a convivência, em definitivo”, “o poder moral, que exerce cada pessoa
sobre si própria e que a impede de violar o direito dos outros ".
Neste sentido, o interesse , numa sociedade comercial e
industrial, isto é; a honra, nas
monarquias, conserva elementos comuns,
com a virtude antiga de participação
e de preeminência do interesse geral,
ainda que nasça de movimentações, radicalmente diferentes. Em ambos os casos,
"os cidadãos devem submeter-se a uma disciplina
moral e a estabilidade
do Estado funda-se na influência,
que costumes e crenças exerçam sobre o comportamento das pessoas " e
destas sobre aquele.
Dada a diversidade dos homens e
das sociedades, não há fórmula única, relativamente à melhor forma de governo;
" cada Nação tem a sua ciência ", tinha escrito já nas cartas persas .
Como assinalou Vernière, considera mais estável a
monarquia baseada, na virtude. Mas
se não existe o melhor regime, se existe o pior, por
princípio e por critérios de eficácia: o despotismo, que destrói a liberdade
humana; e, com a liberdade, destrói
simultaneamente a possibilidade de moralidade e de opção; ao mesmo tempo
revela-se como o mais inseguro; uma
revolução, uma mudança de circunstâncias deitam por terra, com uma facilidade
assombrosa, todo o edifício da tirania.
O relativismo de Montesquieu,
nunca o conduz a um conformismo neutral, axiologicamente. A sua rejeição
do poder arbitrário, chama-se tirania,
ditadura ou despotismo, é taxativa.
Mas as cautelas, que há a ter, face à tendência para o abuso, apoiam-se em instituições e mecanismos técnicos. E esta é a finalidade da política, que é, sempre, um segmento da vida das
pessoas e das sociedades, um meio e
nunca um fim, em si mesmo, com limites
claros e evidentes. Limites marcados pela própria "natureza das coisas ", pelo "espírito geral da Nação ", pela
liberdade dos cidadãos e, muito particularmente, por mecanismos institucionais, que fazem "com que o poder trave o próprio poder
".
Essa é uma opção ética, face ao relativismo:
a assunção da pluralidade face à
uniformidade; a vigilância e participação, nas instituições que, ao
impedirem a queda, no despotismo, asseguram também o funcionamento
social.
Uma moral laica,
independente de toda a religião revelada,
que, no entanto, acaba por unificar o interesse
geral, através da concorrência dos
interesses particulares, sempre que estes se enquadrem, nas leis e
costumes, na legislação e na política, que realizam eficazmente o espírito de
justiça sem "obrigar" os
particulares a contrariarem a "natureza
das coisas ".
A política e a virtude operam em planos diferentes, mas estão inter-relacionados,
para o indivíduo.
A justiça é diferente da política e esta não tem por que ter como
finalidade, a ideia de Bem.
Para tornar possível a convivência dos homens, os princípios éticos informam a vida
política geral, mas a política prática é
a arte do possível; é a habilidade.
Os problemas da moral, para Montesquieu , assinalou, na sua
altura, António Adam, não tem uma resposta simples e a verdade resulta da comparação
e das vantagens e inconvenientes,
que apresentam as várias soluções
possíveis.
Como escreveu noutro lugar, Montesquieu,
é muito consciente de que cada opção
comporta um risco é uma perda e quiçá, a opção ético-política diária, sem a possibilidade
de uma fórmula universal e intemporal, seja cuidar de eliminar o perigo principal.
De resto, como disse,
anteriormente, ao referir-se o campo da virtude
política, atende-se ao acto e não à intenção, com que se liberta todo um espaço
privado, para o cidadão, no qual rege, regula a sua própria consciência moral;
Por outro lado, a sua realização, na política, atende, sempre
a meios técnicos, autónomos, e não a recursos emocionais difusos, vagos.
A política, para Montesquieu,
não tem por objeto o aumento do poder do Estado, mas garantir a paz e segurança individuais. Ė sempre um poder limitado. A finalidade do homem é
conseguir a
felicidade neste mundo (e, por acréscimo, ao não estar desavindo
com a religião, consegui-la no outro mundo), mas ao poder político, mais que indirectamente,
garantindo simplesmente a segurança do indivíduo e a sua livre expansão legal.
Essa finalidade individual como procura de felicidade remete, na realidade,
para uma pluralidade de objectivos,
pois a felicidade é, por definição, algo subjectivo é variado,
impossível de delimitar universalmente (toda a comparação de uma pessoa com
outra é vã e falsa, pois "comparam-se
situações e não pessoas ", o que um faria com que o outro parece,
que tem, mas, nesse caso, seria outra condição subjetiva diferente, Sobre a felicidade.)
Somente a lei pode estabelecer um
espaço objetivo, entre as diferentes intersubjectividades e se para Montesquieu
são importantes a felicidade do indivíduo, a virtude, a paz, a estima, acima delas,
e, precisamente, para poder consegui-las todas, está
a liberdade.
Um sistema de liberdade, como escreveu Berlin, onde
não há soluções finais, nem
perfeições últimas, e onde resulta melhor “que a gente tenha opiniões equivocas a
acioná-la,
para que tenha opiniões correctas
".
A propósito da incerteza e liberdade da condição humana, que
assinala sempre, Montesquieu, “somos livres e incertos ", e de sua
insistência, no que estas ações incertas supõem algo diferente de
considerá-las caóticas ou acidentadas ; "várias coisas determinam o espírito geral..." ;
pode aplicar-se às lições do presidente, e à possível
incomodidade, que causa a sua ausência, de ortodoxia,
obrigando-nos a pensar, por nós próprios, as belas palavras que
Díez Corral referia a outros espíritos
livres, como Pascal e Tocqueville:
Acaso porque não se nos impõe com cómodo magistério
dogmático, senão que nos forçam a ser autênticos homens do nosso tempo, mas da
sua estatura, que devemos alcançar, com o nosso próprio vigor intelectual e
moral, ante responsabilidades inéditas. Mas, no fundo, quando nos deixamos
penetrar pelos seus modos de pensamento, resultam uns gigantes amáveis que,
como os dos vitrais de catedral, nos põem aos ombros, para vermos mais que eles
e, ao mesmo tempo, nos ensinam a caminhar, pelo nosso pé.
FIM
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