Vi e revi o programa da Rádio Televisão
Portuguesa (RTP) “Sexta às 9” ,
emitido no passado dia 24 e senti-me indignado. Nele foi apresentada uma
pretensa investigação sobre o sindicalismo na Administração Pública (AP) que,
com tristeza, classifico de insulto ao sindicalismo e à democracia.
Tenho plena consciência do indispensável
papel daquele canal público de televisão. A RTP vive tempos difíceis, sob
fortes ataques e perante complexos desafios que merecem atos de solidariedade
de todos os que defendem o regime democrático. Mas nem estes factos, nem o
respeito profundo que tenho pelos seus jornalistas e outros profissionais me
desviam da acusação àquele programa.
A dado passo e depois de referências a
lutas sindicais em curso, designadamente a uma possível “paralisação geral da
AP”, afirmou-se: “no meio deste turbilhão contestatário, há uma realidade que
nunca tinha sido investigada”. Vê-se o programa e o que se descobre? A
repetição, pela enésima vez, de que há dirigentes sindicais a mais na AP.
Fazendo a contabilidade do total de dirigentes a tempo inteiro e
atribuindo-lhes um salário bruto médio de 1500 euros (será?), concluem que
custam “6,5 milhões de euros aos contribuintes”. Este valor é idêntico ao que
recebe meia dúzia de gestores de topo de grandes empresas – pessoas com mérito
– que se alimentam de negócios chorudos com o Estado.
Enquanto são lançadas dúvidas e suspeições,
o programa vai mostrando as caras mais conhecidas do sindicalismo, com destaque
significativo para o Secretário-geral da FENPROF (os professores estão num
processo de luta necessária mas delicada), e também imagens dos Secretários-gerais
da CGTP-IN e da UGT que, por sinal, não são da Administração Pública. No meio
do “filme” enxertam depoimentos de alguns dirigentes sindicais que jamais devem
ter imaginado o teor acusatório do programa.
Quantas repartições da segurança social,
das finanças, da justiça e de tantos outros serviços da AP existem por todo o
Continente e Regiões Autónomas? Quantas escolas dos diversos graus de ensino,
universidades e politécnicos? Quantos hospitais e centros de saúde?
Existirem 311 dirigentes a tempo inteiro,
para todo o nosso espaço territorial, no conjunto total de sindicatos da AP é
um exagero? Que disparate! Face à imensidão dos problemas com que os trabalhadores
se debatem é fácil concluir que há centenas e centenas de dirigentes e
ativistas sindicais que, com sacrifícios para a sua vida e a das suas famílias,
completam a atividade daqueles 311.
Os direitos sindicais na AP são iguais aos do
setor privado. O que se pretende então? Acabar com o sindicalismo na AP? De
facto, no tempo de Salazar, os sindicatos eram pura e simplesmente proibidos.
A democracia tem custos financeiros, mas as
sociedades modernas têm assumido que esses custos são compensados pela defesa
do valor da liberdade e da dignidade. Que a democracia propicia condições de
desenvolvimento de capacidades, do conhecimento, do progresso social e do desenvolvimento
humano harmonioso, assente na reprodução de práticas de solidariedade, de
participação cívica, de busca efetiva da igualdade.
Nas nossas sociedades, em que o trabalho
deve ter um lugar e um valor central, existe algum exemplo de democracia sem a existência
de sindicatos?
O percurso feito pelo movimento operário e
sindical foi por vezes tortuoso e até trágico, cheio de êxitos e de fracassos,
de avanços e de retrocessos, quantas vezes sujeito a ataques, a atos de
repressão, a campanhas difamatórias orquestradas. Mas as suas ideias, as suas propostas
e ação marcaram o evoluir da humanidade e as grandes transformações sociais e
políticas.
Existe um reconhecimento universal,
expresso por instituições e destacados atores políticos e sociais de diversas
áreas, de que o projeto europeu, nas suas dimensões de progresso, de democracia
e bem-estar – o melhor que já foi construído e hoje está a ser destruído – se deveu,
em grande parte, à luta dos trabalhadores pelos seus direitos sociais e
políticos.
“Tempos de crise” são tempos de muita
“malvadez difusa”. É preciso sentido de responsabilidade e mais respeito pelos
sacrifícios das gerações que nos antecederam, feitos para que hoje possamos
viver uma vida bem melhor que a sua.
[Texto de Manuel Carvalho da Silva Ex-Secretário Geral CGTP, JN]
Sem comentários:
Enviar um comentário