quinta-feira, 10 de abril de 2014

A FARSA MÉDICA

Comunicado
A insubstituível demagogia do Ministério da Saúde

Recentemente, pelo terceiro ano consecutivo, a comunidade médica foi confrontada através da comunicação social com a possibilidade dos enfermeiros verem reforçadas as suas competências profissionais. Essa hipótese foi formulada pelo Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Saúde quando, em entrevista ao Diário de Notícias divulgada a 30 de Março, refere que os médicos, em determinadas circunstâncias, “podem ser mais ajudados no desempenho das suas funções [ajudados pelos enfermeiros, bem entendido], criando condições para que façam tarefas onde são verdadeiramente insubstituíveis”. Por outro lado, o Director-Geral da Saúde disse, no mesmo órgão de comunicação social, que “estão a ser estudadas estas matérias, não só no caso da saúde materna e obstétrica, mas também noutras áreas”, seguindo-se o habitual cardápio de funções: “seguimento das gravidezes de baixo risco, renovação de receitas e a prescrição de exames que estejam sujeitos a protocolos escritos, respeitando as normas”.

O Conselho Regional do Norte da Ordem dos Médicos (CRN) não pode deixar de lamentar, uma vez mais, o recurso a argumentos demagógicos para tratar um tema tão complexo e que influencia directamente a saúde dos cidadãos portugueses.

Em primeiro lugar, é absolutamente leviano dizer-se que há um conjunto de actividades desempenhadas pelos médicos que não o deveriam ser. Ou mais grave ainda, afirmar-se na praça pública que os médicos apenas devem assegurar tarefas onde são verdadeiramente insubstituíveis, sugerindo que, no limite, todos os médicos são substituíveis ou dispensáveis assim se encontre um profissional – enfermeiro, ou quem sabe um especialista em terapêuticas alternativas – capaz de o fazer. Dessa forma se cumpriria o sonho do Ministro da Saúde: extinguir encargos salariais com os médicos, apertar (ainda mais) o orçamento do ministério e atribuir um ‘profissional de saúde’ a cada português.

Um raciocínio tão maniqueísta como o que nos é, frequentemente, apresentado pelos responsáveis da tutela merece esta caricatura. Evidentemente, ninguém imagina que a prestação de cuidados de saúde possa ser realizada sem o contributo e a competência técnico-científica dos médicos. No entanto, alguns idealistas pretendem que uma parte da população aceda a médicos altamente especializados e outra, menos capaz financeiramente, seja atendida e acompanhada pelos enfermeiros. A Ordem dos Médicos não quer doentes de primeira e segunda categoria em Portugal.

Igualmente lamentáveis são as declarações do Director-Geral da Saúde (DGS). O exemplo das gravidezes de baixo risco (como é que ele sabe que são de baixo risco?), da renovação de receitas e da prescrição de exames no cumprimento de “protocolos escritos”, diz bem do objectivo final que pretende dar às Normas de Orientação Clínica (NOC) que a Ordem dos Médicos tem validado. Nesse sentido, por considerar que existem consequências perniciosas no seu cumprimento, o CRN irá propor em Conselho Nacional Executivo a renúncia imediata do protocolo existente entre a DGS e a Ordem dos Médicos.

Perante a gravidade e a ligeireza dos argumentos repetidamente colocados na comunicação social, o CRN não pode ter outra atitude que não a de os refutar publicamente e repudiar, de forma veemente, a campanha inaceitável de desqualificar e descredibilizar os médicos e desmantelar a qualidade do nosso Serviço Nacional de Saúde.

  1. Os médicos especialistas, nos quais estão incluídos os médicos de Medicina Geral e Familiar, são profissionais que cumpriram uma formação pré e pós-graduada de 11 a 13 anos. As suas competências estão ampla e consistentemente definidas do ponto de vista técnico e científico e, enquanto profissionais, ocupam uma posição primordial e nuclear no nosso serviço público de saúde.

  1. As competências adquiridas durante o curso de Medicina e durante a frequência dos internatos médicos não são possíveis de obter de outra forma. Um médico e um enfermeiro têm naturalmente competências diferentes e responsabilidades distintas. A eficácia do seu trabalho conjunto nas diferentes unidades de saúde resulta do respeito devido a cada profissão e a cada profissional. E não é por acaso que nas equipas multidisciplinares a legislação existente consagra o médico como coordenador.

  1. Um estudo científico prospectivo datado de Novembro de 2010, publicado pelo British Medical Journal, sobre a morte perinatal na Holanda, país pioneiro na legislação que prevê a possibilidade de haver enfermeiros-parteiros a assistirem partos em casa, concluía o seguinte: “Recém-nascidos de mulheres que preferiram o acompanhamento de uma parteira a um obstetra durante o trabalho de parto registaram um risco 3.66 vezes superior de morte perinatal, quando comparado com recém-nascidos cujo trabalho de parto foi supervisionado por obstetra”. Mais ainda, o mesmo estudo, concluiu que recém-nascidos de grávidas de baixo risco cujo trabalho de parto foi supervisionado por uma enfermeira-parteira tinham um risco mais elevado de morte perinatal durante o parto e o mesmo risco de admissão em unidades de cuidados intensivos neonatais, quando comparado com recém-nascidos de grávidas de alto risco cujo trabalho de parto decorreu sob a supervisão de um obstetra.

  1. De acordo com o relatório da OCDE de 2013, a taxa de mortalidade infantil em 2011 em Portugal foi de 3.1 por mil nados vivos. Como termo de comparação, refira-se que na Holanda, no Reino Unido, na França e na Espanha, países citados pelo Secretário de Estado Adjunto do MS, a taxa de mortalidade infantil em 2011 foi de 3.6, 4.3, 3.5, e 3.2 por mil nados vivos, respectivamente.

  1. Em 2012, a taxa de mortalidade neonatal, de acordo com o portal PORDATA e o Instituto Nacional de Estatística, foi de 2.2 e a taxa de mortalidade perinatal de 4.2. Estes valores colocam o nosso sistema de saúde no primeiro lugar relativo ao declínio da mortalidade infantil.

  1. Estes excelentes resultados decorreram de reformas implementadas no passado, que permitiram o acesso universal de todas as mulheres grávidas a consultas e acompanhamento médico durante toda a gravidez, e o acesso ao parto em unidades hospitalares com serviços especializados, garantindo a qualidade das condições assistenciais para a mulher e o recém-nascido.

  1. Os médicos especialistas em Medicina Geral e Familiar são particularmente questionados nesta reiterada posição dos nossos governantes. Será oportuno lembrar que estes médicos especialistas têm desenvolvido um excelente trabalho ao nível das várias unidades de saúde em todas as suas áreas de intervenção, que incluem naturalmente a saúde da mulher e da criança e a vigilância de doentes crónicos. De resto, a criação, em Portugal, da especialidade de Medicina Geral e Familiar foi rapidamente acompanhada por uma melhoria da qualidade dos cuidados de saúde e de vários dos principais indicadores a ela associados.

  1. É claro e inequívoco, para todos os intervenientes no SNS, que existem muitos serviços necessitados de mais enfermeiros para prestar aquilo que é da sua estrita competência e responsabilidade. Será na amplificação desta necessidade que os representantes desta classe profissional devem concentrar esforços, respeitando o carácter multidisciplinar e complementar das equipas de saúde.

  1. De acordo com o relatório da OCDE de 2013, Portugal em 2011 tinha 4.0 médicos por 1000 habitantes, mais do que a média dos Países da ODCE (3.2), e 6.1 enfermeiros por 1000 habitantes, número claramente inferior à média dos Países da OCDE (8.7).

O CRN tem defendido de forma persistente e continuada a existência de legislação que proteja o direito dos doentes ao acesso a cuidados de saúde qualificados que respeite de forma clara as competências próprias dos médicos e dos outros profissionais de saúde.

A violação de competências médicas nunca transferiu qualquer benefício objectivo para os doentes. Quer a nível nacional com a Lei da prescrição por DCI quer a nível internacional com a atribuição de competências médicas a outros profissionais de saúde. Os indicadores de qualidade existentes não nos deixam mentir. Os médicos têm o maior respeito pelo trabalho e pelas competências dos outros profissionais de saúde. Acreditamos que os melhores resultados em saúde são obtidos quando se estabelecem relações de trabalho em equipa multidisciplinar e em complementaridade, respeitando as competências próprias de cada profissional.

Não deixamos, porém, de lamentar e de nos posicionar abertamente contra a tentativa de aumentar números e diminuir custos prejudicando seriamente a qualidade dos cuidados de saúde.

O Ministério da Saúde tem o dever de publicamente clarificar esta matéria e dizer a verdade aos portugueses. Nós estaremos atentos e disponíveis para defender até às últimas consequências o reforço da relação médico-doente e o direito dos doentes a uma Medicina de qualidade.

Poderá aceder à notícia do Diário de Notícias sobre este assunto através do seguinte link.
Aceda ainda à participação do Presidente do CRNOM no programa Testemunho Directo do Porto Canal sobre «Reforço das competências dos enfermeiros» em https://vimeo.com/90649088.

O Conselho Regional do Norte da Ordem dos Médicos
8 de Abril de 2014
Até parece que estão uns contra os outros; é aqui que começa a farsa!

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