As sociedades
secretas e a revolução
18 de Agosto
de 2010, 0:00
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Confundir o papel da Maçonaria e da
Carbonária no período que levou à implantação da República é um erro comum, mas
grosseiro. Eram em tudo distintas, embora lutassem as duas pelo fim da
Monarquia. Quando o regime caiu, os seus destinos também foram bem
diferentes. Por António Ventura
É habitual, quando se fala da
proclamação da República, em 1910, relacionar o evento com a acção determinante
das sociedades secretas - a Maçonaria e a Carbonária -, o que frequentemente
gera confusões, equívocos e erros grosseiros. Estamos perante duas organizações
distintas, a todos a níveis, desde as origens, contextos fundacionais,
referências, composição social e objectivos. Enquanto a Carbonária era de facto
uma organização secreta, agindo no maior sigilo, nada transparecendo para o
exterior, a Maçonaria dificilmente podia ser classificada como tal, uma vez que
eram conhecidos os nomes dos seus dirigentes e publicava boletins e anuários com
informações sobre muitos responsáveis a nível nacional e local.
A Maçonaria surgiu no início do século
XVIII em Inglaterra. Esta é a realidade histórica, não obstante as referências
lendárias que lhe foram associadas. Nascida num contexto inglês, numa sociedade
que sofreu dezenas de anos de guerras religiosas e políticas, era um espaço
privilegiado de reflexão, um ponto de encontro e de diálogo entre homens com
ideias políticas e religiosas díspares. Daí a interdição de discussões de
carácter político ou religioso fracturantes. Era naturalmente elitista -
bastava a obrigatoriedade de saber ler e escrever para lhe limitar
drasticamente o acesso.
Em contrapartida, a Carbonária, que
nasceu 100 anos depois, em Nápoles, em plena Restauração, com ramificações no
Jura e na Floresta Negra, implantou-se em Itália e em França reunindo
descontentes com o rumo da Europa depois do Congresso de Viena, congregando
liberais, antigos militares que serviram no exército napoleónico, burgueses,
intelectuais e estudantes. Era uma organização política e popular, virada para
o combate político, o que a distinguia da Maçonaria, utilizando um simbolismo
relacionado com a floresta e os trabalhos nela realizados, o que de novo
contrastava com o simbolismo maçónico da construção e dos construtores. Os seus
membros tinham a designação de Bons-Primos e organizavam-se em Barracas.
Enquanto em 1727 já se assinala
actividade maçónica em Portugal, as primeiras referências à Carbonária datam do
início da década de 30 do século XIX, possivelmente entre emigrados liberais
refugiados em Paris. As notícias dessa Carbonária desaparecem depois da guerra
civil (1834), para voltarem a surgir na década de 40, com a Antiga e Sublime
Ordem da Carbonária Lusitana. Após um período de actividade entre 1842 e 1843,
desapareceu para ressurgir depois da Patuleia, e sob os ecos das Revoluções de
1848. Até 1852 teve uma intensa actividade com a organização de Choças e
Barracas e a eleição de uma Alta-Venda, tendo Coimbra como principal centro de
irradiação. Algumas estruturas persistiram até aos finais do século, mas a
Carbonária que participará na revolução republicana é outra, ou melhor, são
outras, no plural.
Ritos iniciáticos
Em 1897 surge a Carbonária Portuguesa,
republicana, a partir de uma organização estudantil, a Maçonaria Académica. A
sua actividade é modesta nos anos subsequentes, sendo o seu órgão máximo a
Alta-Venda chefiada por Luz de Almeida como grão-mestre. As iniciações
faziam-se no interior de casas, em especial nos Centros Republicanos António José
de Almeida e Botto Machado, e no Teatro Heliodoro Salgado. A cerimónia decorria
num ambiente decorado para inspirar temor ao candidato, usando os carbonários
presentes balandraus (um capote largo e comprido) ou máscaras.
Paralelamente existiu outra organização,
com a designação de Bonfim, também conhecida como Liga Progresso e Liberdade. A
sua sede foi descoberta pela polícia, sendo o núcleo dissolvido pelos próprios
membros, todos anarquistas intervencionistas ou republicanos avançados, que
fundaram outro, a que deram o título de Carbonária Lusitana, também conhecida
pela designação de Carbonária dos Anarquistas. Heliodoro Salgado foi o seu
grande dinamizador. Esta Carbonária estava ligada, a partir de 1899, à loja
maçónica irregular Obreiros do Futuro. As iniciações eram diferentes das que
ocorriam na Carbonária Portuguesa, faziam-se ao ar livre, no campo, nos
arredores de Lisboa, nas estradas e nos caminhos para a Tapada de Ajuda, nas
minas do Canto, no Casal do Alvito, nas furnas da serra de Monsanto e até no
Cemitério dos Prazeres.
Embora a Carbonária Lusitana fosse
autónoma e formada maioritariamente por elementos operários que não recusavam a
luta política, a colaboração táctica com o Partido Republicano Português (PRP)
teve consequências e alguns militantes acabaram por se passar para o campo
republicano.
A fusão entre as duas carbonárias
ocorreu nos finais de 1907 ou início do ano seguinte. Ao ser exposta a
actividade dos Obreiros do Futuro após a explosão na Estrela, com prisões e
fugas para o estrangeiro, muitos dos seus membros integraram-se na Carbonária
Portuguesa. A absorção ocorreu sem qualquer acordo formal, sentindo os
carbonários lusitanos necessidade de serem enquadrados. As iniciações de
António Maria da Silva e de Machado Santos tiveram importantes reflexos no
futuro da Carbonária, pelos papéis que ambos iriam desempenhar, integrando a
sua direcção juntamente com Luz de Almeida. As suas responsabilidades seriam
ainda maiores após a ida do grão-mestre para o exílio, de onde só regressou depois
de proclamada a República.
A iniciação de António José de Almeida
trouxe à Carbonária um prestigiado caudilho republicano e facilitou as suas
relações com a Maçonaria, cada vez mais sensível ao ideal republicano. Luz de
Almeida, com a sua figura discreta de bibliotecário, percorria o país, fazia
contactos, promovia iniciações, fundava novos canteiros ou Choças. Mesmo os
elementos isolados, que não se podiam integrar nas estruturas ordinárias,
mantinham uma ligação na qualidade de Vedetas. A sua ida para o estrangeiro
impediu que estivessem em Portugal no momento da revolução. Há notícia da
existência de outras organizações de cariz carbonário, autónomas mas actuando
em consonância como os grupos Coruja e Mineiros.
Da velha Carbonária Lusitana - a Carbonária
dos Anarquistas - sobreviveu um pequeno núcleo em redor de José do Vale, João
Borges e Bartolomeu Constantino, que participarão no 5 de Outubro, mas sob a
direcção da Carbonária Portuguesa. Nos relatos sobre as jornadas de Outubro de
1910, dos antigos carbonários lusitanos restam Bartolomeu Constantino, Carlos
Antunes, António Alcochetano e José de Jesus Gabriel.
Quanto à Maçonaria, apesar de se dever
manter fora da acção política num sentido partidário, a verdade é que a sua
progressiva republicanização era evidente, ainda antes do grão-mestrado de
Magalhães Lima, o que levou a um envolvimento mais directo dos maçons na
mudança de regime. Sendo a Maçonaria uma organização progressiva, isto é, que
sempre pugnou pelo progresso da Humanidade a todos os níveis, para muitos
maçons, em Portugal, esse progresso era incompatível com a manutenção do regime
monárquico. Daí a necessidade de mudança, não por razões partidárias, mas por
razões nacionais. Foi o que sucedeu de um modo mais visível a partir da reunião
de 14 de Junho de 1910, realizada no Palácio Maçónico, com centenas de maçons,
na qual foram dados ao grão-mestre plenos poderes para organizar uma Comissão
Maçónica de Resistência, em articulação com o Directório do PRP, composta por
José de Castro - grão-mestre adjunto do Grande Oriente Lusitano Unido -, Miguel
Bombarda, Cândido dos Reis, Francisco Grandela, José Cordeiro Júnior, José
Simões Raposo, Manuel Martins Cardoso, António Maria da Silva e pelo próprio
Machado Santos. Estes dois últimos, simultaneamente dirigentes da Carbonária
Portuguesa.
A reunião de 29 de Setembro de 1910, na
sede do Directório do PRP, na qual se preparou a revolução, é esclarecedora
quanto aos elementos e forças envolvidos, dirigentes partidários, da
Carbonária, de lojas maçónicas e do Grande Oriente Lusitano Unido: Simões
Raposo, Machado Santos, José Cordeiro Júnior, António Maria da Silva, José
Barbosa, Inocêncio Camacho, Cândido dos Reis, Manuel Martins Cardoso, Eusébio
Leão, José Relvas, e Miguel Bombarda.
Crises e cisões
O papel da Carbonária nas jornadas de
Outubro de 1910 foi determinante. Note-se que o almirante Cândido dos Reis,
chefe máximo do movimento, era simultaneamente carbonário e maçom, o mesmo
sucedendo com Machado Santos, o "pai" da República, que assumiu a
chefia dos revoltosos na Rotunda.
Sobre a actividade da Carbonária após o
5 de Outubro de 1910, as informações ainda são escassas. Teve um papel
mobilizador contra as incursões monárquicas, mas as dissenções no interior do
Partido Republicano Português puseram termo à organização que tanto fez pela
proclamação da República. Continuaram, certamente, a existir grupos de cariz
carbonário, na sua maior parte ligados ao sector "democrático" do
PRP, mas a velha Carbonária deixou de existir, porque a Monarquia, razão de ser
da sua fundação e labor, também já não existia. Fora uma organização de
contrapoder que visava destruir um regime e os pilares que o suportavam.
Entre 1910 e 1926, a Maçonaria estará
presente em todos os níveis da vida política, social, económica e cultural do
país. Em Março de 1910, o Grande Oriente Lusitano Unido contava com 97 Lojas e
58 Triângulos. Em igual data de 1911, aqueles números subiram para 122 Lojas e
79 Triângulos, e os efectivos passaram de 2844 em Março de 1910 para 3192 em
igual mês do ano seguinte. Essa afluência também se deveu ao oportunismo dos
que buscavam atestados de republicanismo.
Durante a Primeira República, cerca de
metade dos ministros e dos parlamentares foram maçons. O mesmo sucedeu com três
dos Presidentes da República: Bernardino Machado, Sidónio Pais e António José
de Almeida, tendo o primeiro e o último sido grão-mestres do Grande Oriente
Lusitano Unido.
As lutas políticas e as rivalidades
pessoais não tardaram a fazer-se sentir, afectando a unidade do Partido
Republicano. Os confrontos na Constituinte acabaram por revelar uma realidade
que poucos continuavam a querer ignorar: alcançada a mudança de regime, a
unidade era dispensável. O velho PRP irá fragmentar-se, dando origem a várias
formações partidárias, e esse fenómeno acabou por ser transmitido à Maçonaria,
que conheceu a partir de 1913 convulsões internas e uma grave cisão, em 1914,
que só foi solucionada em 1926, pouco antes do 28 de Maio, quando já era tarde
de mais. Outras sociedades secretas existiram nessa época e aguardam um estudo
mais profundo, da Legião Vermelha aos Cavaleiros da Luz.
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Professor da Faculdade de Letras de
Lisboa e director do Centro de História da Universidade de Lisboa
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