terça-feira, 20 de março de 2018

É


Crónicas de fim-de-semana 9 de Março de 2014
Noite de Vela - Silêncios que gritam
Esta é uma história comum.
O que a torna distinta, quiçá interessante, provavelmente pertinente, certamente útil indiscutivelmente real para quem a lê, é o facto de abrir as portas de um quotidiano desconhecido que necessita ser revelado. É um conto real, um mito que quotidianamente se vive.
O silêncio impera na enfermaria a partir das 22 horas, a intensidade da luz diminui nos espaços colectivos e é abolida na unidade dos doentes.
O enfermeiro da noite inicia um processo cerebral automático que tem de gerir com objectividade. Por mais seguro e experiente que seja, o enfermeiro de vela sente medo, o medo da responsabilidade por ser fonte de atitude, de esperança de intervenção em 30 doentes a seu cargo.
Nada é leviano naquele ser nesse momento, no início da vela. Tenta criar mecanismos de defesa que o ajudem, tenta criar uma relação de conforto emocional com a auxiliar que o acompanha. Tenta dar ao auxiliar também uma sensação de segurança, o objectivo é transformá-lo numa pessoa capaz de o
ajudar nessa noite, capaz de partilhar com ele a necessidade de colaborar assertivamente naquele período de crise.
Os passos tornam-se automaticamente mais leves, o enfermeiro quase desliza, abre gavetas devagar, toma decisões em silêncio, tenta perturbar o menos possível o instável equilíbrio daquelas pessoas que dele dependem.
Dirige-se aos que precisam em voz sussurrada, com um mínimo de luz que não perturbe os que estão num momento de repouso. Precisam desse repouso que lhes alivia o sofrimento de mais um dia de doença, as mentes adormecidas pela exaustão dos exames, visitas, contactos, perguntas, intervenções do dia ou da medicação imposta exigem respeito por aquele corpo que agora descansa num estado letárgico mas que qualquer coisa pode tornar vigil e por isso mais sofredor.
O enfermeiro de vela, espreita durante toda a noite às portas das enfermarias, entra pé ante pé e tenta ouvir a respiração dos que lhe parecem quietos demais, observa drenos e sacos de conteúdo gástrico, urinário ou drenos de liquido hemático, encontra respostas no silencio que o deixem mais seguro.
A noite avança e o silêncio torna-se absoluto. O enfermeiro sabe que é um silêncio artificial e fugaz, a qualquer momento aquela aparente paz pode ser perturbada por um grito de dor ou um sonho de medo de um doente, aquele momento é apenas o prelúdio de uma emergência para a qual sente sempre duvida se estará preparado. É difícil saber tudo de tudo. Os protocolos não são suficientes nem abrangentes e ele sabe-o.
Apenas tem a certeza de duas coisas, da sua sensibilidade e do seu medo. Qualquer ser humano sensível que cuida de pessoas que sofrem tem medo. Medo de não ser Deus! Medo de ser impossível poder aliviar, medo de não poder resolver, medo de não saber.
A noite avança mais, alonga-se o silêncio e acentua-se esse medo e a impossibilidade de o partilhar. O enfermeiro de vela viaja solitário por um caminho em que atrás de cada árvore pode surgir o inesperado, o perigo, a dor, a impotência perante o sofrimento.
São três da manhã, olha o pequeno saco de plástico com a parca ceia que lhe é entregue para passar a noite, olha sem olhar, sem apetite, nada lhe apetece a não ser a aurora, quando ela chegar tem a certeza de poder partilhar os medos com os colegas, contar o que se passou na noite, explicar as decisões que tomou.
O enfermeiro de vela anseia pela aurora.
Quando a luz desponta no horizonte, usa rotinas sossegadoras para ele. Já pode entrar na enfermaria entregar um termómetro a cada doente e falar com ele uns segundos ou minutos. Maior que a necessidade de registar os sinais vitais é a necessidade de sentir que cumpriu o seu dever, os doentes ainda falam, os doentes ainda dizem bom-dia, os doentes ainda olham agora com o olhar reconhecido que lhes substituiu o olhar ansioso quando se apagaram as luzes, a quem os velou e assegurou que mais um dia amanhecesse para todos.
O enfermeiro de vela há muito deixou a candeia de Nightingale para espreitar os doentes, deixou-a mas apenas a substituiu por uma artificial luz de presença, o significado da candeia e da luz são os mesmos, por cada doente velado um pouco mais de paz, um pouco menos de medo de não conseguir que a aurora encontre toda essa gente que sofre e lhe foi entregue.
O enfermeiro de vela, com o corpo desfeito de cansaço senta-se num esforço sobre-humano á cabeceira do doente que tocou a campainha às 5 da manhã apenas para perguntar as horas. Apenas? Não, o enfermeiro da noite sabe que o doente precisa é de saber se alguém o vigia, ouvir uma voz uma vez mais porque continua vivo, o doente apenas precisa de afastar o medo que o fez acordar.
O enfermeiro de vela senta-se nessa cama desse doente em particular… passa-lhe a mão na testa e diz sabendo que a noite ainda é longa: então que se passa? Não consegue descansar? Olhe que é quase manhã, daqui a pouco temos aí o dia, é quase manhã, sossegue, nós estamos aqui! Quase sempre o
obrigado do doente indica que ficou mais tranquilo.
Horas de fazer uns registos, dirige-se ao posto de trabalho mas não chega lá… um gemido noutro quarto é mais urgente que sentar-se e registar, Mais uma luz de presença que iluminará levemente o rosto sereno do enfermeiro. Essa luz não revela os medos e o cansaço que sente, essa luz numa relação biunivica
dá ao doente a noção da presença de alguém que se importa e dá ao enfermeiro a possibilidade de olhar o dente, o fácies, o medo ou a dor estampada no rosto, a ansiedade, dá-lhe razões para agir, dá significado ao facto de estar ali e poder ajudar.
O enfermeiro de vela é um ser humano em relação com muitos seres humanos que sofrem num período em que tudo lhe é entregue, os medos dos outros a medicação dos outros a comunicação dos outros, a vida dos outros no silêncio de uma solitária noite.
Respeito estes enfermeiros, que jantam sem fome porque sabem que os espera uma noite de decisão solitária, sem serem deuses tentaram construir um céu a partir de um purgatório de sofrimento. Nunca sabem se o irão conseguir.
Só a aurora o diz, só a aurora os sossega, só a aurora lhe trará a vontade de um café que lhe reabilite os músculos e lhe sussurre… dever cumprido.
A Aurora é a melhor amiga destes enfermeiros anónimos que velam e cuidam e sentem e andam péante-pé e vencem medos e passam a mão na testa dos doentes mais para lhe oferecer o poder tranquilizador do toque do que para avaliar a temperatura da pele.
Como já um dia disse, estes enfermeiros conseguem sobreviver a uma noite impossível para outros e ter um sorriso ao alvorecer, estes enfermeiros, cansados, desfeitos, com filhos pequeninos com febre em casa, conseguem porque aprenderam a transformar a impessoalidade do tratar na relação de ajuda de cuidar. Em cada cama vêem um amigo, um pai, um avô, um filho, um familiar, em cada movimento da sua própria sombra longa projectada pela parca luz de presença da silenciosa enfermaria vêm que são a única solução, a única esperança, a única força capaz de afastar medos e diminuir sofrimento dos outros, desses “rostos familiares deitados” que esperam ver nascer mais um dia.
Respeitem o medo e a fraqueza destes anjos brancos que em cada vela fazem das fraquezas forças, das impossibilidades possibilidades, do escuro da noite um alvorecer de um novo dia.
Respeitem-lhe os medos, respeitem os dias de vida que encurtam á sua própria existência em cada noite em que o silencio e lentidão dos passos apenas significam preocupação com os outros. Respeitem a correria emergente que também acontece de noite por vezes. Admirem esta gente que cuida de gente, mas cuida sozinha, isolada, sem mais ninguém ali. É admirável como mantêm a capacidade de carinho aos outros, quando eles próprios se sentem tão sozinhos e desamparados.
Respeitem esta gente que faz de cada vela um milagre de levar a bom porto um barco sem luzes por entre recifes que projectam sombras de medo.
Ao levantar, em nossas casas devíamos lembrar-nos deles, devíamos pensar, a esta hora chega a aurora às janelas do hospital, a esta hora dezenas sem nome olham a claridade no horizonte agradecidos por ela. Acho que se nos lembrarmos deles, será mais fácil nós próprios vermos mais facilidades no nosso dia que começa.
Obrigado aos meus enfermeiros que fazem de cada vela um milagre de carinho e saber ser, de cada aurora um sentimento de dever cumprido, de cada toque terapêutico um brilho no olhar de outros.
Bem-hajam.
Júlio Salvador, Guarda, 9 de Março de 2014

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