Na "ressaca" de uma consoada que pela primeira vez em
6 anos consecutivos pude
festejar junto da família, reservo uns momentos para
maçar quem quiser ler estes
desabafos.
A maior parte dos meus amigos do FB conhece-me bem, porque muitos são mais do
que
amigos virtuais. Conhecem o meu modo de estar por vezes truculento, o
espirito não
alinhado e rebelde, a intolerância para o disparate e a
displicência, a falta de
corporativismo. Costumam resumir tudo na designação
"mau feitio" . Os mais
contaminados pelos eufemismos em voga dirão
que tenho um baixo quociente de
inteligência emocional. Não discordo do
veredicto , prefiro ter mau feitio a ter mau carácter
e o meu QI (não emocional)
avaliado, em tempos de juventude, em 138 e 140, parece
afastar-me dos níveis de
debilidade e embotamento de raciocínio.
Vem tudo isto a propósito.de que sendo médica me sinto diariamente agredida,
insultada e
difamada pelos profissionais do "eu acho" e do "eles
deviam".
Para quem me conheça menos eu apresento-me ;
médica anestesista, 57 anos, 31 de profissão dedicada nos últimos 14 anos
sobretudo à
Neuro-anestesia, 10 dos quais no H. de S.José.
Para esclarecimento de muitos que transformam os honorários médicos em
mistérios de
sociedades secretas, a minha remuneração na categoria de
assistente hospitalar
graduada,
com exclusividade na função publica, horário de
42 horas semanais (actualmente 39, pela
redução anual de 1 hora após os 55
anos) é de 4107€ (preço hora ~ 22€) dos quais
receberei no fim do mês ~ 2400 €
(preço hora ~ 9€). A condição contratual de
exclusividade
obriga-me à prestação
de mais 12 horas extra semanais se a instituição hospitalar o exigir
( e
exige), resultando em 53 horas semanais, das quais 24 são um período continuo.
Posso ser solicitada (e pressionada) a realizar mais horas semanais .
Actualmente, face à
carência de recursos na área de anestesiologia, perfaço em
média 70 horas semanais (39
em actividade de bloco operatório programado, o
resto em urgência) e tenho 1 fim de
semana por mês sem urgência, (nos meses
mais compridos posso chegar à loucura de ter
2 ). Por lei poderia não realizar
trabalho nocturno a partir dos 50 anos e ter isenção total de
trabalho de
urgência a partir dos 55. Se eu e os meus colegas do H de Faro cumprirmos a
lei
do trabalho à risca, a urgência cirúrgica será encerrada porque restam 3
elementos para
garantir o apoio anestésico 24/24h 7 dias por semana. Em resumo
com o ordenado base e
as horas acrescidas, recordo - 70 horas semanais- a minha
remuneração fica em - 3800€.
Acima da média dos ordenados em Portugal ? Sem
dúvida ! Mas 70 horas representam a
soma do horário de dois médicos sem
exclusividade que é de 35 h.
Portanto meus senhores os malandros dos médicos trabalham ao fim de semana,
mesmo
quando a lei os isenta - e também trabalham nos feriados.
Perguntam alguns porque têm os médicos que ganhar mais do os maquinistas do
metro, do
que os policias, do que os licenciados em geral ;
Faço um pequeno desvio para falar das forças da ordem . Os que têm como dever
zelar
pela nossa segurança são talvez a única categoria profissional mais
odiada do que os
médicos. Desprestigiados, mal remunerados, sujeitos a
julgamentos e em alguns casos
penas de prisão quando cumprem a missão que lhes
é profissionalmente exigida. Ridículo
e afrontoso que um policia tenha que
pagar o próprio equipamento, surreal que se
responsabilize por danos em
viaturas usadas em serviço. Não há salário demasiado alto
para quem arrisca a
vida para que a nossa esteja segura. Existem abusos, sabemos que
sim,
protestamos contra a caça à multa e algumas arbitrariedades de que somos
vitimas.
Mas imagino como será difícil ver uma e outra vez sair pela porta da
frente o marginal que
horas antes detiveram, não raramente arriscando a vida, e
que um juiz, de interpretação
mais liberal da lei, põe e liberdade.
Vivemos numa sociedade acéfala de faz de conta, de inversão de valores, do
politicamente
correcto, do fundamentalismo da tolerância, dos chavões momentâneos
gritados em ondas
emocionais bem orquestradas, em proveito próprio, pelos
bonecreiros da política.
Somos formatados para pensar o que os media querem que pensemos, sem
contraditório,
sem interrogação, adormecidos e embalados em conceitos pre
fabricados
De uma era em que as saídas profissionais se estruturavam na adolescência, em
que ser
"bom aluno" nos permitia antecipar um vasto leque de
escolhas, passamos para a era do
"todos licenciados mas poucos com
emprego" A iniciativa privada rejubilou com a
possibilidade de fazer
crescer universidades como cogumelos que vomitam todos os anos
ufanos jovens
diplomados em áreas de denominação exótica e cuja utilidade social carece
de
ser provada. Orgulhosos progenitores, que gastaram "uma nota preta"
em
mensalidades, exibem orgulhosos os filhos doutores a quem está reservado o
desemprego,
a emigração , o prolongar da agonia (deles e dos pais) em mestrados
tão úteis quanto as
licenciaturas ou, injustiça das injustiças, aceitar um
trabalho abaixo do que é devido a um
"licenciado".
A questão agrava-se com as licenciaturas modelo expresso, em que plantar uma
árvore no
dia da dita ou assistir a 3 comícios, pode dar direito a equivalência
numa cadeira e com o
padrinho certo, chegar até ministro ou primeiro ministro.
Nivela-se por baixo no esforço,
mas pretende-se nivelar por alto nos direitos.
Em Medicina não se obtêm créditos por colar pensos rápidos ou assistir a todas
as
temporadas do Dr. House. Prescinde-se de muitas saídas com os amigos, de
muitas horas
de divertimento.
Num mundo governado pelos licenciados fast banaliza-se o trabalho acrescido que
implica
atingir os patamares cimeiros da elite universitária. Sim ELITE, sem
falsas modéstias, sem
sentimentos de culpa.
Sim, sabemos o que nos espera, as horas de estudo intenso que se prolongam após
a
licenciatura. Sim, adoptamos o juramento de Hipocrates, de que muitos falam e
poucos
fora da área médica conhecem. Mas saberá quem nos diaboliza, como é
morrer por dentro
cada vez que temos que anunciar um desfecho trágico, saberá
quem nos acusa de sermos
frios e distantes, como exorcizamos os nossos demónios
e os nossos medos, porque
ninguém como nós entende a fragilidade da vida e o
pouco que é necessário para que
tudo se desmorone ? Entenderá quem tanto nos
critica, como é recomeçar uma e outra
vez esta luta desigual contra o fatalismo
"do destino", da "sua hora" ou da "vontade de
Deus" ?
Na ordem social das coisas considerava-se adequado remunerar de acordo com o
contributo para o bem comum e a importância desse papel na sociedade. Hoje
somos
todos licenciados, mas um engraxador licenciado continuará a engraxar
sapatos (e muita
ciência é necessária na arte de engraxar), e um médico
continuará a tratar doentes. Terão
a mesma relevância social ? Terá a função de
maquinista do metro, para usar uma
comparação que li na imprensa, equiparação à
actividade clínica ? Existe um facto muito
simples que permite dar a resposta;
qualquer médico em 6 meses, vá lá, um ano de treino,
será um apto engraxador ou
condutor de metro, o inverso é verdade?
O endeusamento de que alguns falam vem da relação amor/ódio que a sociedade
sempre
estabeleceu com a classe médica. Como disse no inicio sou pouco
corporativa e tenho
plena consciência de que na minha, como em todas as
profissões, existe muita erva
daninha. Cometo erros como todos. Só não os
comete quem não se aproxima dos
doentes. Entre erro e negligência há um
diferença abissal ; cometemos um erro, quando
escolhemos uma estratégia
terapêutica que julgávamos a mais adequada e a evolução
revelou que não era,
cometemos um erro quando equacionamos mal um diagnostico ou o
timing de uma
intervenção. Somos negligentes quando nos estamos nas tintas para
reflectir sobre uma solução diagnostica ou terapêutica e optamos pelo que nos dá menos
trabalho ou melhor nos remunera. O erro não deverá ser repetido se as mesmas
circunstâncias ocorrerem. Chama-se experiência e não envolve só os mais novos.
A
negligência deve ser severamente punida. Convém não confundir estes dois
conceitos.
Neste tu cá tu lá da democracia porreiraça, temos um franja da população
formada em
Medicina na Anatomia de Grey, nos diagnósticos surreais do Dr. House
e na pesquisa
Googleniana frequente. Surgem assim os opinadores que restruturam
uma e outra vez o
SNS e que a darem-lhes poder acrescentariam ás leis que nos
regem, uma alínea especial
para a pena de morte a aplicar aos médicos.
Estranhamente não raro são elevados aos píncaros da fama, ao Olimpo dos deuses
da
medicina, clínicos a quem os pares não confiariam um panarício. São normalmente
médicos de sorriso fácil, palmadinha nas costas, que gostam de introduzir uma
nota de
ansiedade acrescida antecipando diagnósticos catastróficos que
"felizmente não se
confirmam porque chegámos a tempo", que incutem no
doente o sentimento de auto
congratulação pela decisão tomada, pelo dinheiro
investido, pelo acerto da escolha. São
os médicos do "principio de
enfarte" , do "principio de AVC"', do "principio de
pneumonia",
entidades patológicas desconhecias dos tratados universais de
medicina mas que se
perpetuam de boca em boca disseminando a fama e a simpatia
do senhor doutor. São os
médicos das longas prescrições e muito mais longas
requisições de exames.
É diferente no SNS puro e duro, onde o sorriso se apaga ao fim de meia-hora de
luta com
o sistema informático que pretende modernizar hospitais com servidores
que mal
aguentam a instalação do Tetris. Surgem os médicos carrancudos de farda
amarrotada, 2
números acima ou abaixo do normal, porque "é o que há",
olharentos por privação de
sono, resignados ás avarias e falta de equipamento
numa gincana quotidiana para
ultrapassar o "não há", não
compraram" ou "já não vem mais". Que chatice ser neste antro
para indigentes que são despejados os que optam pela saúde VIP dos hospitais
privados,
quando o plafond se esgota, as economias desapareceram e a casa já
está à venda. O
sorriso fácil esmorece e a palmadinha nas costas vira
empurrãozinho firme. O enfarte já
ultrapassou o principio e aproxima-se do fim.
Negam-nos até o podermos tratar doentes, agora tratamos "utentes" e
até "clientes", nesta
lógica de gestor que o hospital e o
hipermercado se gerem do mesmo modo. Os resultados
estão à vista.
Integrei como anestesista a equipa de neurocirurgia vascular de S.José, que só
abandonei
por ter mudado de hospital. Quem me conhece sabe que se necessário
trabalharia de
borla para salvar uma vida. Fi-lo muitas vezes noutros
contextos. Tenho a certeza que
todos os elementos que integravam a equipa o
fariam também. O que o publico e os
potenciais doentes têm que entender é que o
que ficou destruído com os cortes cegos e
surdos, foi a estrutura complexa que
envolve o diagnostico e a terapêutica destes
doentes e que não pode ser exigido
a profissionais de saúde que literalmente
paguem para trabalhar como acontecia
com a equipa de enfermagem. Nenhuma
disponibilidade e boa vontade isoladas,
poderia remendar o assunto. A fatalidade
que vitimou o jovem David era uma
fatalidade anunciada. Em revolta, alguns de nós
desejaram que tivesse atingido
quem permaneceu cego e surdo aos avisos e às
propostas, o Sr ministro ou o
sociopata que o assessorava. Teria surgido mais cedo a
solução.
Não, não somos bem pagos, pelo menos no SNS. e sim, somos uma profissão de
elite.
Com muito orgulho.
Um bom ano de 2016."
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