quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

ALEXANDRE O GRANDE

Alexandre Tomás ao i. “Há pessoas a chegar desnutridas às urgências. E crianças com fome”
Faltam 2 mil enfermeiros só no Sul do país. Mas há 750 que já foram seleccionados e estão à espera de autorização para trabalhar desde 2012
Alexandre Tomás, presidente da Secção Regional do Sul da Ordem dos Enfermeiros, fala ao i dos problemas que enfrenta o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Afirma que a carga sobre os enfermeiros é brutal e que a população não tem ideia do défice de política estratégica para a área da saúde nos três últimos anos. E diz que não é tudo uma questão de dinheiro, mas de reorganização e vontade política. Paulo Macedo está no topo da crítica.
Qual é o seu diagnóstico do sector público da saúde em Portugal?
O sistema de saúde português está confrontado com um conjunto de dificuldades. Assistimos, em concreto nos últimos três anos, a uma alteração substancial das necessidades de cuidados de saúde da população. Sabíamos à partida que, estando Portugal envolvido num resgate financeiro e com limitações nesta matéria, haveria um impacto económico e social. Mas não houve da parte da tutela nenhuma preocupação com perceber esse impacto, apesar de o Memorando da troika prever a incorporação no sistema de instrumentos de monitorização e avaliação do impacto na população das medidas implementadas.
E qual está a ser o impacto?
Estamos a ver pessoas recorrer aos serviços de saúde com mais necessidades. O que verificámos nestes três anos foi uma diminuição progressiva dos recursos, humanos - em concreto enfermeiros - e materiais. Isto resultou na agudização de problemas: pessoas que precisam mais e serviços que têm menos.
O que previa o Memorando em termos de saúde?
O Memorando da troika continha três ou quatro ideias principais para a saúde, que não eram novidade e que um estudo feito pela Gulbenkian também identificava: uma utilização mais racional do medicamento, a aposta nos cuidados primários e nos cuidados continuados e a reorganização da oferta hospitalar, ou seja, uma diminuição de oferta em algumas áreas, sobretudo urbanas, como Lisboa, Porto e Coimbra. Uma vez que os recursos são escassos, tem de se racionalizar.
Concorda que é preciso diminuir?
Tem de haver essa reorganização, que, nalguns contextos, passa por diminuir a oferta hospitalar. Mas não pode ser na lógica de cortar, tem de ser de redistribuir.
Começando pela questão dos medicamentos, foram tomadas medidas nesta matéria.
As medidas que foram tomadas nesta matéria foram estritamente de controlo do preço do medicamento. E o que sabemos é que em Portugal, do ponto de vista agregado, há uma prescrição de medicamentos superior à média do espaço europeu.
Porque é que isso acontece?
Por várias razões. Porque os profissionais não têm condições de acompanhar as pessoas e recorrem a uma prescrição fácil - não digo incorrecta, mas por não ter capacidade de acompanhar o paciente. Por exemplo, se não existem equipas para acompanhar as pessoas na comunidade, elas vão recorrer às unidades de saúde para consulta. A alternativa é recorrer à prescrição. Temos muita dificuldade, salvo raras excepções, em ter um conjunto de normas técnicas de prescrição de fármacos de uma forma transversal. Isto tem de ser uma posição política de estabelecer normas. Sabemos muito pouco sobre o medicamento: apenas o que é prescrito, o que é disponibilizado, mas daí para a frente não sabemos mais nada, se é tomado, se resulta, se teve contra-indicações. A utilização mais racional dos medicamentos passaria por garantir que as pessoas têm na comunidade, no domicílio, este processo de adesão ao regime terapêutico. Isto não é feito.
Mesmo assim pouparam-se milhões...
No Orçamento do Estado para 2015 o governo diz que houve uma poupança de cerca de 310 milhões de euros, mas não podemos esquecer que quando este governo tomou posse pagou a dívida de 1,9 mil milhões. Quando olhamos para o perfil dessa dívida, mais de metade é indústria farmacêutica. Nos dois anos seguintes tivemos uma poupança de 310 milhões, 16% do que pagámos à cabeça, mas apenas numa perspectiva da compra do medicamento, não na utilização mais racional desses medicamentos. Não é uma medida consequente.
Do lado dos recursos humanos, concretamente dos enfermeiros, qual a realidade que se vive?
O balanço social do SNS diz que o número de enfermeiros diminuiu. Tivemos nos últimos três anos uma saída de enfermeiros por aposentação e emigração. Há cinco, seis anos, um enfermeiro recém-formado não tinha emprego e procurava fora, mas este perfil de emigração estendeu-se a enfermeiros com experiência profissional. No Sul, as aposentações e a emigração representam entre 10% e 15% de enfermeiros e nunca houve autorização de contratação para repor estas faltas. Temos pouco mais de 15 mil enfermeiros, entre Santarém e Portalegre até ao Algarve. A isto é preciso acrescentar que a profissão de enfermagem é predominantemente feminina, 80% são mulheres jovens em idade fértil. Há 5% a 10% nesta situação, com atestados de longa duração, e também não são substituídas. Isto são, no total, menos 15% a 20% de enfermeiros só no Sul do país.
Quais são as repercussões?
O enfermeiro em contexto hospitalar não pode sair do seu posto de trabalho sem ser substituído. Se está a trabalhar das oito da manhã às quatro da tarde e o colega que vem das 16 à meia-noite não aparecer, tem de ficar no posto de trabalho e fazer mais um turno. Em equipas desfalcadas o potencial de seguir para o turno seguinte é significativo e está a acontecer. Estamos a fazer mais horas do que seria de esperar e isto leva à exaustão das equipas, que também já estamos a verificar.
Que consequências para os doentes?
Como enfermeiros verificamos que não temos condições para responder a todas as necessidades de cuidados de saúde das pessoas. Há aqui um limite de segurança que é garantido, mas não há a disponibilidade de que a pessoa precisa e que merece: tem de ser acolhida, acompanhada, vigiada, estar segura no espaço onde está, e isto implica uma disponibilidade que hoje não existe. Muitas vezes, num contexto de internamento, os enfermeiros têm a seu cargo mais do dobro dos casos que deviam ter.
Quantos enfermeiros existem e quantos seriam necessários?
Se seguíssemos o referencial da OCDE, em Portugal faltariam 25 mil enfermeiros. Isto seria o ideal, mas para as unidades que temos, no Sul do país, faltam hoje entre 1500 e 2 mil enfermeiros.
Em 2012 o ministro da Saúde anunciou que havia 750 vagas para enfermeiros no país. Onde estão?
Não estão. Abriram concurso e não estão nos locais.
Não estão como?
O processo é público, administrativo, burocrático e da responsabilidade da tutela. É incompreensível como, anunciada em 2012 a contratação de 750 enfermeiros - 257 para a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo - ainda não seja efectiva. É disfuncional. Houve o concurso, candidaturas, foram apreciados os currículos, seriados, publicou-se a listagem com a classificação e os enfermeiros não estão no local.
O que falta?
Tomar posse. Dizer que aos admitidos que podem ir trabalhar.
Já alguém questionou o ministro Paulo Macedo?
Já perguntámos várias vezes às administrações regionais de saúde. Dizem que estão à espera, que a autorização está algures.
Em que estado chegam hoje as pessoas às urgências?
É dramático olhar para as pessoas que chegam aos serviços de urgência com uma situação clínica grave, desnutridas. Têm fome. Não se alimentam e não é por falta de informação, é por falta de recursos. Ficam internadas quatro ou cinco dias, reequilibram-se, e no momento da alta dizem que nem vale a pena passar receita. E mais dramático ainda é que no serviço ao lado, a urgência pediátrica, as crianças também chegam com fome. Isto cria uma pressão muito grande nos serviços de saúde, que são como que a última linha de resposta nestas circunstâncias de crise financeira e social.
Se as pessoas chegam num estado mais degradado, isso também fica mais caro, ou não?
Claro. As pessoas que hoje chegam aos serviços de saúde, nomeadamente de urgência, são doentes mais doentes e por isso mais dependentes. Desde 2011 temos verificado que existe um aumento do nível de dependência das pessoas que recorrem aos serviços de urgência. A pessoa chega, é triada numa determinada prioridade clínica, mas tem maior nível de dependência. Isto fez com que a percentagem de doentes que vão ao serviço de urgência e têm de ficar internados tenha aumentado brutalmente desde 2011. E aumenta também o tempo de internamento, porque chegam numa situação mais grave e o processo de recuperação é mais lento. A percentagem de doentes que têm de ficar internados passou de cerca de 7% a 8% para 11% a 12%. Em cada 100 doentes há 12 que vão ficar internados. Se o serviço de urgência recebe 500 pessoas por dia, veja a pressão que é criada no hospital para internar esta gente.
As mortes nas urgências, que o ministro considerou normais, são normais?
Este ano houve mais pessoas a morrer vítimas da gripe e de problemas sazonais comparativamente com anos anteriores. Diria que as situações noticiadas são preocupantes individualmente, mas são um sintoma do desajustamento do próprio sistema. A triagem com o protocolo de Manchester é segura, o que não está correcto é o tempo de espera para a observação clínica.
Há médicos que concordam que determinados pacientes tenham alta desde que sejam acompanhados por médicos e enfermeiros em casa. Isto existe?
O que é desejável é que o cidadão recorra ao serviço de urgência numa situação pontual e passe lá o menos tempo possível. Se requer internamento, a partir de certa altura os cuidados não são tão diferenciados como os que o hospital disponibiliza. Então aquela pessoa pode estar na unidade de cuidados continuados ou em sua casa com uma equipa de cuidados primários, mas é preciso que ela exista. E estão deficitárias. Em 2014 alertámos a tutela para a dificuldade na resposta das equipas de intervenção domiciliária dos cuidados continuados.
Qual foi a resposta?
Foi a ausência de resposta. O grupo português de triagem identificou entre 40% e 50% de situações que recorrem às urgências como não urgentes. Mas as pessoas não tem alternativa, não só do ponto de vista cultural, mas a tutela tem a responsabilidade de reorientar as pessoas para outros serviços. Quando dizemos que há pessoas que vão ao serviço de urgência apenas à procura de companhia, o que estamos a dizer é que há um conjunto de problemas de carácter social que têm de ser garantidos e não são.
Há médicos suficientes?
Outra vez por via do referencial da OCDE, sabemos que Portugal tem mais médicos por habitante que a média da OCDE. Existe uma dificuldade de distribuição equitativa por algumas áreas de especialidade, que estão hiperconcentradas em centros urbanos. Isto também decorre do não planeamento da tutela, que tem de garantir políticas de contratação efectivas assertivas. Em Lisboa há redundâncias de oferta hospitalar.
Seguindo o protocolo de Manchester, que pulseira dava ao ministro da Saúde?
Eu diria que o Serviço Nacional de Saúde está numa cor laranja, é uma situação muito urgente e precisa de uma intervenção consistente, caso contrário é difícil garantir uma resposta à população.
O que é que este ministro já fez desde que tomou posse no que toca aos enfermeiros?
Talvez seja mais fácil dizer o que poderia ter feito.
Não, peço-lhe que diga o que fez.
Objectivamente? Nada.

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