É mais fácil emigrar do que ser enfermeiro “num país sem sonhos”
Sara Ribeiro não encontrou emprego em Portugal. Cláudia Vieira vai trocar o lugar que tem no Hospital de Valongo pelas perspectivas que encontrou na Irlanda. Foram mais de 10.000 os profissionais de enfermagem a pedir desde 2009 à ordem o documento necessário para trabalhar no estrangeiro.
Há um ano Sara Ribeiro estava de malas feitas para o Reino Unido. Depois do envio de mais de 100 currículos que em nada deram, emigrou em Janeiro de 2014 e é agora enfermeira num prestigiado hospital público de Londres. Aos 24 anos, diz que “foi preciso coragem para sair”, mas assegura que “será necessária muito mais coragem para voltar a um país sem sonhos”. Um estado de espírito semelhante ao da também enfermeira Cláudia Vieira, que nos primeiros meses do próximo ano vai para a Irlanda, deixando o seu trabalho “sem perspectivas” no Hospital de Valongo. Com 36 anos, defende que “é difícil ir para fora, mas impossível mesmo é ficar aqui”.
Tanto Sara como Cláudia engrossaram a longa lista de enfermeiros portugueses que nos últimos anos saíram do país em busca de uma oportunidade no estrangeiro. De acordo com os dados da Ordem dos Enfermeiros enviados ao PÚBLICO, no total, desde 2009, foram mais de 10.000 os profissionais de enfermagem a pedir a este organismo a chamada "declaração das directivas comunitárias", necessária para trabalhar fora do país – o que não significa que todos tenham saído. Até 30 de Novembro deste ano foram 1956 os enfermeiros que solicitaram o documento.
No entanto, se de 2009 para 2010 o número de pedidos aumentou de 609 para 1030, continuando a subir para 1724 em 2011 e 2814 em 2012, desde 2013 houve algum decréscimo. No ano passado foram feitos 2516 pedidos e neste ano, até ao final de Dezembro, tinham dado entrada 1956. Cláudia deixará o Norte, Sara é menos uma a sul. Quanto a diferenças regionais, a Secção Regional do Norte da Ordem dos Enfermeiros registou sempre mais pedidos de saída do que o centro e o Sul, com excepção de 2013 e de 2014, em que foi ultrapassada pela Secção Regional do Sul.
No caso de Sara Ribeiro a decisão foi relativamente rápida. Acabou o curso no Verão de 2013. Seguiu-se a procura de emprego. “Fiz uma lista das instituições de saúde, procurei emails, telefones, fui presencialmente aos sítios. Fui literalmente às páginas amarelas. Enviei seguramente entre 100 e 150 currículos e tentei mais no privado,porque sou formada na Universidade Católica e temos muito boa imagem nesse sector. Ao mesmo tempo fiz voluntariado no Banco do Bebé e no Re-Food”, conta ao PÚBLICO via Skype, no seu quarto em Londres, poucos dias antes de regressar a Lisboa para o Natal em família.
O resultado dos contactos foram apenas três entrevistas, uma das quais escondia na verdade um trabalho a pouco mais de 500 euros em que seria também recepcionista e faria limpezas depois das 21h. Denunciou o caso à Ordem dos Enfermeiros. Chegou a receber um telefonema para uma vaga que não atendeu a tempo e quando ligou para o número tinham passado ao nome seguinte. Uma informação sobre recrutamentos para o Reino Unido através da empresa Kate Cowhig chegou-lhe por email em Setembro de 2013. Arriscou.
“A minha ideia sempre foi fazer carreira de enfermagem em Portugal, mas quase todos os sítios pedem dois anos de experiência em meio hospitalar e se uma pessoa não consegue começar a trabalhar como pode ter experiência?” Os responsáveis pela unidade inglesa vieram a Portugal e passou as provas teóricas e práticas. Quiserem saber em que área gostava de trabalhar e disse cirurgia geral. Foi a proposta que lhe fizeram. Não adianta o valor certo, mas diz que ronda o triplo do valor para início de carreira em Portugal, que é de perto de 1000 euros. Mudou-se a 2 de Janeiro, com a primeira renda paga. A Ordem dos Enfermeiros explica que não tem os dados da emigração segmentados por faixas etárias, mas assegura que na maior parte dos casos a declaração é pedida por enfermeiros em início de carreira, mas já com alguma experiência. Ainda assim, devido ao grande número, também é comum encontrar entre os que emigraram vários casos de pessoas entre os 30 e os 40 anos já “altamente especializadas”.
Cláudia Vieira ainda não tem data certa para a mudança, mas sabe que será nos primeiros meses do ano e para perto de Dublin, pela língua e proximidade do aeroporto. Aliás, os números da Ordem dos Enfermeiros indicam que a Europa é o destino escolhido pela esmagadora maioria dos enfermeiros que decidiram sair do país, sendo Inglaterra o local mais procurado, seguido por França, Bélgica, Alemanha, Suíça e Irlanda. Ao contrário de Sara, Cláudia tinha emprego em Portugal e experiência, pelo que quis ir pessoalmente à Irlanda conhecer o sítio onde vai trabalhar, num processo intermediado pela empresa Borboleta JobAbroad, que lhe tratou da documentação e inscrição nos organismos irlandeses.
Foi só há 11 anos que Cláudia ingressou no curso de Enfermagem, a sua “paixão”. Antes foi administrativa. Trabalha desde os 18 anos. “A minha filha nasceu há 11 anos no dia do exame de Anatomia”, recorda, para justificar que é por ela que se vai mudar da cirurgia de ambulatório do Centro Hospitalar de S. João para uma unidade irlandesa dedicada a doentes com Alzheimer. “Uma das coisas que me faz ir para fora é mesmo a minha filha, ver que aqui nunca lhe vou conseguir dar uma vida. Vejo-a a crescer e a aproximar-se a idade da faculdade”, diz.
Empresas de recrutamento mais procuradas
Cada vez mais médicos e enfermeiros emigram através de empresas de recrutamento. A nacionalidade é uma das melhores referências no exterior.
Procura de novos desafios profissionais, necessidade de passar por uma experiência internacional ou simplesmente dar um pontapé na crise e contrariar o desemprego e os baixos salários praticados em Portugal. Estes são os argumentos mais comuns que levam cada vez mais médicos e enfermeiros portugueses a saírem do país, num passo que é dado, em grande parte das vezes, com o apoio de empresas de recrutamento. Duas destas intermediárias, ouvidas pelo PÚBLICO, asseguram ter o trabalho facilitado: fora do país a qualificação e desempenho dos profissionais de saúde portugueses é muito (re)conhecida e um excelente “cartão-de-visita”.
O director nacional da empresa Borboleta JobAbroad explica que estão desde 2011 em Portugal e que, desde essa altura, já ajudaram cem enfermeiros e médicos a ir trabalhar para outros países, representando estes últimos apenas uma dezena. A Europa é o destino mais comum, mas, no caso desta empresa holandesa, o Médio Oriente passou a ser nos últimos tempos uma aposta forte. Independentemente do destino, no caso dos enfermeiros, adianta Sérgio Gonçalves, como o número de profissionais interessados em sair é mais elevado, as ofertas não são tão atractivas como para os médicos, até porque normalmente saem do país mais novos.
Em todos os casos dão apoio na tradução de documentos, inscrição nas ordens profissionais estrangeiras e em toda a burocracia, viagem, alojamento e dados sobre o país de destino, ainda que praticamente só no caso dos médicos sejam comuns algumas ofertas como a passagem aérea ou uma visita prévia ao novo local de trabalho. “A percentagem de médicos que saem por necessidade financeira é muito mais pequena do que nos enfermeiros. Os médicos procuram muito enriquecimento curricular, enquanto os enfermeiros muitas vezes estão sem emprego. No caso dos médicos temos ofertas entre os 10 mil euros e os 15 mil euros por mês, mas que tem critérios como anos de experiência”, adianta o responsável da Borboleta JobAbroad, salientando os perfis diferentes entre as duas profissões. Para os enfermeiros os salários podem chegar, por exemplo, aos 3500 euros na Jordânia e triplicar em relação a Portugal na Irlanda e Reino Unido.
Em comum Sérgio Gonçalves destaca a “qualidade” dos médicos e enfermeiros portugueses como “cartão-de-visita”. “Tanto os médicos portugueses como os enfermeiros têm uma qualificação ao mais alto nível da Europa. Em alguns países os enfermeiros não tiram pontos, não tratam feridas, são quase equivalentes ao nosso auxiliar e, por isso, procuram os portugueses que pela sua qualidade e profissionalismo desempenham desde o início estas funções.”
No caso da empresa belga Moving People, especialista no recrutamento internacional de profissionais de saúde, a selecção em Portugal acontece desde 2010 e já conseguiram colocar perto de 200 enfermeiros na Bélgica, tanto na zona francesa como flamenga, explica Marco Costa, country manager da empresa. Foram também já colocados dois médicos e outros 20 estão em processo de colocação. Também apoiaram quatro dentistas e há mais 40 em avaliação.
“Cada vez mais sentimos que os profissionais de saúde não estão satisfeitos em Portugal e ultimamente temos sentido um aumento de interesse por parte de médicos especialistas em trabalhar em países como Bélgica e França. Primeiro por estarmos a falar de salários três a quatro vezes superiores e depois por serem países com um custo de vida relativamente semelhante ao de Portugal”, justifica Marco Costa, que diz que o aumento da procura da empresa por parte de médicos e de médicos dentistas cresceu sobretudo nos últimos três meses.
Do lado de quem procura portugueses, as necessidades são várias. Marco Costa destaca as carências na Bélgica em termos de cardiologistas, gastroenterologistas, oncologistas, psiquiatras, neurologistas, internistas (medicina interna), oftalmologistas e medicina física e de reabilitação. No caso de França, a procura é sobretudo de médicos de família. “Procuram especialistas com excelente formação, com um bom nível linguístico e que não sintam problemas de adaptação”, resume o responsável da Moving People, que assegura que os profissionais portugueses dão uma excelente resposta a estes critérios, ganhando um salário superior e “melhor qualidade de vida”.
Marco Costa garante que os que decidem emigrar são “reconhecidos pelo seu desempenho e qualidade” e “trabalham menos horas”. Após a integração, a empresa estima que um médico português que vá para a Bélgica possa ganhar valores superiores a 12.000 euros por mês. “Quanto a França, a Moving People garante contratualmente aos médicos de família que irão ter honorários superiores a 10.000 euros por mês”, acrescenta. Lembra que de momento há concursos abertos para especialistas na Bélgica, para médicos de família em França e para dentistas com mais de quatro anos de experiência também na Bélgica. No caso dos especialistas e dos dentistas, a empresa traduz e autentica de forma gratuita os documentos e autorizações necessárias para emigrar e oferece uma viagem ao país de destino, para visita e observação, disponibilizando ainda depois a viagem definitiva e apoio na instalação no país de destino.
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