sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

OS ENCATADORES DE SERPENTES



bordão de Esculápio ou caduceu de Asclépio é o símbolo da medicina.

OM dá parecer negativo a requisição de exames por protocolos associados à Triagem de Manchester
Ex.mo Senhor Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Saúde
Assunto: Parecer urgente sobre proposta de Despacho
Analisada a proposta de Despacho relativa à requisição de exames complementares por protocolos associados ao Sistema de Triagem de Manchester (MTS), a Ordem dos Médicos vem emitir o seu parecer negativo nos seguintes termos e fundamentos:
1. O MTS consubstancia um sistema de triagem geral com atribuição de prioridades no atendimento de utentes urgentes, e não uma triagem clínica, pelo que, de modo algum, poderá ser estabelecido um paralelismo com as chamadas “vias verdes”. Efectivamente, MTS, “vias verdes” e “solicitação de exames” à entrada da urgência são questões completamente diferentes, sendo surpreendente e incompreensível a confusão estabelecida entre elas por sua Exa. o Ex.mo Senhor Secretário de Estado Adjunto da Saúde!
2. É particularmente grave, muito grave, que se afirme, no preâmbulo da proposta de Despacho, que, não havendo qualquer avaliação médica prévia, o MTS permita implementar protocolos de analgesia e exames complementares de diagnóstico! A Ordem tem a certeza que o Grupo Português de Triagem não concorda com esta afirmação. O MTS é uma mera triagem de prioridades! Não está preparado nem validado para mais nada! Fazer analgesia antes de observação clínica representa um enorme risco para os doentes, podendo mascarar algumas situações potencialmente graves!
3. De resto, como sistema geral de atribuição de prioridades no atendimento de utentes, o MTS revelou já as suas insuficiências, como notícias mais recentes revelam, quer no que toca à deficiência do sistema em resolver o verdadeiro problema das urgências, que é o da insuficiência de meios nos SUs, em especial de profissionais médicos e de enfermagem, mas também de outros técnicos, quer no que respeita à classificação errada de alguns doentes, com sérios prejuízos para os mesmos;
4. Na verdade, a Ordem dos Médicos não foi informada sobre os resultados de auditorias externas que tenham sido já realizadas. O MTS existe no terreno há vários anos, as queixas de doentes e médicos têm sido muitas, algumas particularmente preocupantes, mas os verdadeiros resultados da sua aplicação continuam a não ser revelados;
5. A forma como o MTS tem sido apresentado pela própria Ordem dos Enfermeiros, de um sistema de triagem de doentes urgentes feito por enfermeiros, é falaciosa e enganadora, obrigando a Ordem dos Médicos a recordar que os enfermeiros, que respeitamos, não fazem a triagem dos doentes, limitando-se a aplicar os protocolos, elaborados por médicos e sob delegação médica, sendo a triagem de prioridades dos doentes feita pelo resultado dos algoritmos e não pelos enfermeiros. Da mesma forma, os enfermeiros não pedem exames nas vias verdes, limitam-se a aplicar um protocolo numa situação muito particular e devidamente tipificada, em que o mesmo exame é essencial para o primeiro diagnóstico diferencial e, não menos importante, vai ser imediatamente observado por um médico!
6. Ao pretender consagrar e generalizar “competências” dos enfermeiros, através de protocolos supostamente validados (certamente saberá qual o significado científico de protocolo validado?), na requisição de exames complementares de diagnóstico, a proposta de despacho incorre em vários erros com os quais a Ordem dos Médicos de modo algum poderá estar de acordo.
7. Em primeiro lugar, atribui competências “protocoladas” a estes profissionais que, nos termos da lei e, em especial, dos Decretos-lei 176/2009 e 177/2009, de 09 de Agosto, são competências próprias dos médicos, como seja a de realização de um diagnóstico;
8. É que o pedido de realização de exames complementares de diagnóstico no contexto geral do MTS deverá ser enformado por uma presunção clínica de diagnóstico até porque, estando em causa exames que importam a ofensa à integridade física do doente e que, em alguns casos, importam riscos para essa integridade, os mesmos só devem ser prescritos/utilizados na medida do estritamente necessário e em face de uma hipótese científica e clinicamente fundamentada de diagnóstico, e não através da multiplicação de protocolos normalizados; a medicina não é aplicável por protocolos rígidos, pois cada doente é um doente, principalmente o doente urgente.
9. Estamos no domínio dos direitos, liberdades e garantias dos doentes pela que a actividade de prescrição de exames complementares de diagnóstico deve obediência aos princípios jurídicos fundamentais da adequação, da necessidade e da proporcionalidade que a proposta de despacho coloca em crise;
10. Em segundo lugar, num contexto onde a política de saúde envereda pela imposição de inúmeras restrições, determinadas apenas e só por critérios economicistas, não se compreende a adopção de uma falsa solução que poderá redundar na realização de exames que, afinal, na maioria das situações, se podem revelar completamente desnecessários e, em alguns casos, perniciosos;
11. Trata-se assim de uma medida que, a ser adoptada, contende com o princípio da eficiência que deve presidir à realização do interesse público;
12. Acresce ainda que, mesmo determinando que os pedidos de exames complementares de diagnóstico sejam apenas e só admitidos perante o preenchimento de uma “check list” prévia de sintomas, tal contende com o facto de a Medicina não dever nem poder ser normalizada, não se tratando, como a prática demonstra na própria aplicação do MTS, de uma ciência precisa e meramente presumida de sintomas padrão que podem representar realidades muito diferentes;
13. Os doentes vão ser obrigados a pagar a taxa moderadora de exames que lhes foram desnecessariamente solicitados e que, durante horas, nenhum médico esteve disponível para observar? Ou estes exames pedidos por protocolo vão ser isentos de taxas moderadoras?
14. Em terceiro lugar, se com a adopção do referido despacho se pretende dar uma resposta ao problema da escassez de recursos humanos nos SUs, o despacho proposto não resolve o problema e apenas pretende criar a aparência de que o utente está a ser atendido e a aceder aos cuidados de saúde, quando a observação por um médico continuará a depender dos recursos médicos existentes nos SUs, problema ao qual o despacho não dá resposta; ou seja, o Despacho visa enganar os doentes. Verdadeiramente, o que adianta ao doente fazer alguns exames se, durante horas, nenhum médico puder observar o doente e analisar esses exames?
15. Por outro lado, o Despacho vai sobrecarregar os procedimentos da enfermagem aquando da aplicação do MTS, atrasando a triagem dos doentes, sem qualquer benefício para os mesmos.
16. Na esmagadora maioria dos doentes, o que vai acontecer é que, quando por fim tiverem a sorte de chegar a sua vez de ser sujeito a observação médica, caso não seja já tarde demais, o doente vai ter de repetir a realização de exames complementares, agora adequados aos diagnósticos diferenciais finalmente colocados na sequência da realização da competente história clínica; não são alguns exames “protocolados” feitos à entrada que evitarão as mortes desnecessárias nos serviços de urgência ou poderão acelerar a orientação dos doentes.
17. Em quarto lugar, lamentavelmente, o Despacho também não dá resposta à necessidade de reforço dos Cuidados de Saúde Primários que são, no entender da Ordem dos Médicos, uma variável imprescindível na resolução das situações clínicas agudas que sobrecarregam os SUs, cuja vocação deverá ser a de atendimento de urgências e emergências médicas.
18. Também não dá resposta à falta de camas hospitalares, um dos factores de congestão das urgências e de sobrecarga de funções dos parcos recursos humanos disponíveis, nem ao esgotamento das macas disponíveis, com reflexo negativo na acção e prontidão dos bombeiros.
19. Finalmente, a avaliação e auditoria externa (verdadeiramente externa) de quaisquer medidas aplicadas no sector da Saúde constituem, a par da transparência de processos, ferramentas essenciais de trabalho e avaliação que deviam ser amplamente implementadas, nesta e noutras matérias, e eticamente divulgadas.
Em face do exposto, a Ordem dos Médicos reitera a sua fundamentada discordância quanto ao teor da proposta apresentada, sem prejuízo do óbvio benefício da actualização generalizada dos protocolos do MTS e respectiva auditoria regular.
Efectivamente, este estranho Despacho mistura e baralha conceitos, irá aumentar a despesa em exames complementares, vai atrasar a aplicação da triagem dos doentes e vai obrigar os doentes a serem submetidos a exames complementares em dois tempos, nada beneficiando de forma substantiva o processo de avaliação e encaminhamento do doente no serviço de urgência.
A única forma de acelerar a observação dos doentes num serviço de urgência é dotando os serviços de urgência dos recursos técnicos e humanos que necessitam, nomeadamente médicos.
Um doente urgente precisa de ser rapidamente observado por um médico, o acto por excelência que vai efectivamente ditar a rapidez com que o doente é diagnosticado, tratado e devidamente orientado. Nada adianta realizar meia dúzia de exames ditados por um protocolo. Os doentes urgentes são dos mais complexos da medicina, não são meros protocolos.
Em conclusão, o presente Despacho é demagógico, inútil e prejudicial, não resolvendo nenhum dos verdadeiros problemas do acesso à Urgência em Portugal.
Ainda hoje, ao visitarmos um serviço de urgência de um Hospital Universitário, encontrámos 52 doentes em macas num espaço previsto para apenas 17 macas, já sem contar com os doentes sentados, estando os profissionais debaixo de um enorme stress, o que, naturalmente, aumenta o risco de erros, cuja responsabilidade não lhes pode ser imputada; e não era dos piores dias...
A Ordem dos Médicos recorda o velho ditado português, fruto de sabedoria milenar, que “não se fazem omeletas sem ovos”, e reitera junto de V.Exa a sua total disponibilidade para, em diálogo técnico e franco, analisar e resolver os problemas das urgências em Portugal.


Com os melhores cumprimentos,
José Manuel Silva
Presidente da Ordem dos Médicos





´   NB: Há anos que os crentes me atacavam por dizer, tentando avisar que a cobra não era o que parecia, porque na minha longa carreira profissional APRENDI a vê-la sem disfarce.
Para os quer ainda têm dúvidas, deixo aqui este pedaço de prosa que fala por si e pela maneira como a serpente olha para os Enfermeiros, sobretudo quando estes cumprem um dever: MOSTRAR O QUE VALEM, POR SI E EM SI.

Com amizade, 
José Azevedo                                                             

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