Já fez investigação em arquivos em várias partes do mundo, mas passar a porta do Arquivo Secreto da Congregação para a Doutrina da Fé, no Vaticano, foi diferente. “É imponente, aquelas paredes espessas que nos fazem desejar lá entrar, sabendo nós que há todo um conjunto de reservas muito rigorosas para ter acesso a este arquivo e às suas especialidades”, conta a docente da Universidade de Coimbra (UC), Maria José Azevedo Santos, que terá sido a primeira mulher leiga a ter acesso, com objectivos de investigação científica, ao documento escrito pela irmã Lúcia sobre a terceira parte do segredo de Fátima. É esse manuscrito que está agora exposto pela primeira vez ao público em Fátima, numa mostra intitulada Segredo e Revelação.
Com o aproximar do centenário, em 2017, das chamadas aparições de Fátima (1917), o Santuário decidiu promover uma reflexão em torno da terceira parte do segredo. Para isso, pediu autorização ao Vaticano para trazer até Portugal, e expor publicamente, o documento escrito em Tui a 3 de Janeiro de1944, quando Lúcia ainda era religiosa de Santa Doroteia.
A exposição Segredo e Revelação, que pode ser visitada na zona da Reconciliação da Basílica da Santíssima Trindade, põe em destaque as três partes do chamado segredo de Fátima - A visão do inferno, O imaculado Coração de Maria, e A Igreja mártir - e mostra pela primeira vez o manuscrito relativo à terceira parte do segredo, aquele que esteve mais tempo guardado e que demorou mais tempo a ser revelado. O documento foi escrito em 1944, deu entrada no Arquivo Secreto da Congregação para a Doutrina da Fé a 14 de Abril de 1957 e o conteúdo só foi revelado ao microfone em Fátima a 13 de Maio de 2000, na cerimónia de beatificação de Francisco e Jacinta. O fio condutor da exposição é a interpretação teológica do segredo feita pelo cardeal Joseph Ratzinger, agora Papa emérito Bento XVI.
Guardado por muito tempo, o documento terá saído poucas vezes do Vaticano. Uma das vezes foi a pedido do então Papa João Paulo II, quando ainda estava na Policliníca Gemelli, depois do atentado de que foi vítima a 13 de Maio de 1981. Outra das vezes terá sido em 2000 quando o então secretário da Congregação da Doutrina da Fé se encontrou com Lúcia, em Coimbra, levando-lhe a carta e pedindo-lhe que também confirmasse que era autêntica.
Foi a pedido da diocese de Leiria-Fátima que Maria José Azevedo Santos esteve, entre 4 e 8 de Setembro, no Vaticano com a missão de analisar e atestar, do ponto de vista científico, a autenticidade do documento. O Papa Francisco autorizou a ida da docente ao arquivo, a investigadora pegou no manuscrito “com luvas”, analisou-o e emitiu para já um parecer oral favorável: é o documento escrito por Lúcia e muito provavelmente terá sido redigido com uma pena de aparo metálico, a tinta azul, numa folha de papel de carta, de quatro páginas, de cor bege, pautado (16 linhas). Mais tarde, a investigadora nas áreas da História Medieval, Ciências Documentais, História da escrita e Arquivos Históricos, irá fazer um estudo aprofundado sobre a carta.
“Já fiz investigação em muitos arquivos da América, da África, nacionais, e já vi muitos documentos e devo dizer que o que senti ao passar aquela porta do arquivo jamais será apagado da minha memória”, diz a especialista em Paleografia e Diplomática medievais, modernas, latinas e portuguesas. Apesar de garantir que tal não interfere com o trabalho científico que lá foi fazer, a professora admite que o facto de ser católica contribuiu para aumentar “o sentimento e a responsabilidade”.
Carta fez “correr rios de tinta”
“Foi uma emoção singular exactamente porque se trata de um autógrafo [documento escrito na íntegra pelo autor] muito especial. Fala-se tanto em Património da Humanidade, aqui temos um exemplo sem ser declarado. Não é preciso declarar, este documento é património da Humanidade, não é dos católicos, não é dos ortodoxos, é da Humanidade”, defende a docente que pertence também à Comissão Histórica do processo de beatificação e canonização da irmã Lúcia.
Apesar de poder ter havido vigilantes e restauradores com eventual acesso ao documento, Maria José Azevedo Santos terá sido a primeira mulher leiga com a missão de o analisar: “Para os objectivos que me foram atribuídos, com este encargo de carácter científico fui realmente a primeira mulher leiga a ter acesso directo ao documento, isso é verdade”, diz a catedrática da faculdade de letras que já foi directora do arquivo da UC e, até hoje, também a única mulher a ocupar o cargo.
A exposição que pode ser visitada em Fátima inclui fotografias e outros documentos, como aquele que foi escrito também por Lúcia sobre as duas primeiras partes do segredo. Faz ainda alusão aos interrogatórios a que foram sujeitos Francisco, Jacinta e Lúcia, depois das alegadas aparições. Existe ainda referência a relatos e artigos da época sobre o fenómeno solar que terá ocorrido em Fátima a 13 Outubro de 1917.
Apesar de admitir que também é católico e que acredita na mensagem de Fátima, o comissário da exposição, Marco Daniel Duarte, doutorado em História de Arte pela UC e director do Museu do Santuário de Fátima, defende que o documento relativo à terceira parte do segredo “extrapola a dimensão religiosa, porque tudo o que é religioso faz parte da cultura humana e torna-se elemento ligado à cultura”: “É um dos documentos mais ansiados ao longo do século XX, é importante não só para o mundo católico mas culturalmente. Alguns preconceitos ideológicos podem levar à tendência de não dimensionar o valor que esta peça tem. Esta folha de papel fez correr rios de tinta ao longo do século XX”, defende. E acrescenta: “Como cientista social também me interessa perceber o que motiva, o que gera movimentos de massas. O debate ideológico nunca cessará e isso é lícito. O que não me parece lícito é desvalorizar o fenómeno, não o interpretando com as ferramentas que cada tempo tem”.
Mesmo Ratzinger, diz o comissário, com “o coração alemão e o rigor teológico” que lhe são conhecidos, “diz que Fátima tem algo de especial”: “O teólogo mais racional, ao olhar para este tema, converte-se”, nota.
De uma forma geral, a primeira parte do segredo descreve uma visão do inferno e a segunda pede “devoção” ao imaculado coração de Maria e a conversão dos regimes ateus, referindo-se em particular o caso da Rússia. A terceira parte descreve um “bispo vestido de branco” que é morto. Se João Paulo II pediu para ver o documento depois do atentado de que foi vítima e considerou que foi “uma mão materna que guiou a trajectória da bala” - hoje incrustada na coroa da imagem de nossa senhora de Fátima, na Capelinha das Aparições -, Ratzinger não pessoaliza a visão profética, estendendo-a antes a todos os papas. Inaugurada a 30 de Novembro, a exposição tem entrada livre e pode ser visitada até 31 de Outubro, todos os dias, das 9h às 19h. Até agora, já contou com 10.156 visitantes.
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